quinta-feira, novembro 30, 2006

O motoqueiro e o som misterioso


Pegou as malas e saiu. Corajoso como fora há dias atrás, quando pegou todas as contas atrasadas e acendeu aquela fogueira. Ascendeu aquela fogueira de maneira relaxante, como que livrando-se de um excesso de peso que machuca as costas. Deixara que aquelas contas se acumulassem, pela sua própria maneira de viver, consumista sim, mas não submisso. Mais se assemelhava a alguma espécie de parasita estranho, excêntrico, que os anti-corpos ainda desconheciam. Parecia mesmo que ele era mutável, tão mutável que antecipava a si mesmo, e se escondia nas neblinas de sua própria falta de identidade.

Saira do seu quarto imundo para entrar naquela estrada, avermelhada e úmida, e quanto mais sua moto antiga seguia por aquelas vias pouco usadas, mais parecia aumentar a chuva. Um barulho, como que um gemido divino o perseguira, mas ele não sabia bem do que se tratava, pensou primeiro que podia ser sua moto, mas logo desistiu de sua hipótese, pois o som era muito disperso, estranho e atraente.

Luis sentiu-se atraído por aquele som. Seu percurso perambulante agora tinha um rumo, encontrar a origem daquele som tão belo, indistinguível e difuso como aquele próprio lugar. Nestas situações que inspiram a mente filosófica, ascendeu um baseado e começou a imaginar como seria se ele fosse apenas uma história contada, de geração em geração, sobre um maluco que escutava os sons da vida, e surfava com sua moto pelos túneis da realidade. A vida para ele era como uma majestade, não existiam bifurcações naquela estrada, ela levava a um lugar só, como que por desígnio divino.

O eco do espaço juntava-se a fumaça que saia da boca de Luis, e encontrava-se com os pequenos matagais nos cantos da estrada avermelhada. Cada vez que a fumaça encostava-se aos matagais, a estrada dava uma tremida, como que tivesse vida, como fosse um pequeno terremoto. E se a estrada estivesse se mexendo, e Luis apenas estivesse parado, o tempo todo? Pensamentos estranhos vagavam por aquelas terras inóspitas.

Durante sua viajem, que já não se sabia se era real ou fantasiada, começaram a aparecer um grande número de motos, com o mesmo destino de Luis, com seu rumo, atrás do som sensual e chamativo, como o de uma sereia mais bela que as aquarelas de Deus. Ele havia se perguntando sobre aquela situação: O que acontecera? Por que tantas motos? Por que essa dis-puta? O mar de perguntas vinha sem as ondas de resposta. Fez então o que qualquer ser humano normal faria nessas situações: Acelerou sua moto e começou a corrida.

Passados alguns minutos já havia despistado aqueles idiotas. Passou a mão no rosto e enxugou os olhos da água que caia, que nessa hora já era excessiva. O som aumentava e tornava-se cada vez mais perceptível, era uma voz feminina, um som de gemido, de prazer. Acelerou então ainda mais a sua moto velha e suja de poeira, tirou seu casaco com seus patches do Motorhead e deixou jogado nas costas. Aquele local começara a ficar mais escuro, mas algo já se pronunciava a sua frente.

Era uma mulher de olhos castanho-mel, mas não era isso que chamava mais atenção e sim sua nudez radical. Ela era o núcleo de todo aquele mundo estranho. O ponto visceral de toda aquela espécie de realidade, coisa que ficara evidente para ele, apenas por uma questão sensitiva. Parou então sua moto suja e dura, que misturava em sua cor poeirenta as cores das cervejas e vinhos de terceira ali derramados. Pegou uma rosa de tijolos e deu a mulher da nudez radical.

Ela olhou seu rosto, segurou com força suas bochechas e ficou examinando. Foram momentos de tensão, indescritíveis por palavras. Então segurou seu pênis com a mesma força e intensidade e falou algo em seu ouvido, algo que até hoje não se sabe, mas que fez Luis suar como uma lebre no cio. O volume e fluxo de sangue no corpo do Luis mudaram totalmente de foco, da defesa para o ataque, e concentraram-se no membro peniano.

Ele então segurou aquele peito maravilhoso com uma das mãos, enquanto a outra passava pelas pernas e subia, até encontrar o ponto de ebulição, nem em cima, nem em baixo, mas no meio, aquele que entre extremidades faz tremer a terra e cair um dilúvio. Ela tremeu com o leve tocar do dedo indicador de Luis em seu clitóris, a passagem foi tão suave como uma nuvem que desliza empurrada pelo leve vendaval, suave como uma pluma.

A chuva intensificara-se ao mesmo tempo em que aumentava o som externo do gemido divino e abria-se um imenso sorriso no rosto da mulher da nudez radical. Ela então tomou a dianteira e empurrou Luiz para o chão vermelho e macio daquela realidade na qual se encontravam. Um leve mexer de sobrancelhas dizia a Luis que eles não tinham tempo... Ele avistou então, enquanto aquela maravilhosa vagina cobria amorosamente seu pênis, um mar de motoqueiros devassos fãs de Judas Priest correndo freneticamente em sua direção, como se tudo aquilo tivesse haver com a vida e a morte.

Foi então que ele se lembrou do que a mulher da nudez radical dissera em seu ouvido, e percebeu como tudo aquilo era de fato importante. Nesse momento toda terra parou e progrediu ao corpo de Luis e da Mulher da nudez radical que se juntaram numa realidade onde não havia mais distinção entre ele e ela, terra e mar, corpo e alma.
Tudo se tornara preto, como o breu da madrugada de uma cidade sem lâmpadas, como o inicio e o fim dos tempos. O silencio absoluto precedeu o auge do som, do calor e da chuva. Corpos relaxados e sensação de bem-estar. A flor de tijolos se abre, e um ponto de luz sai de lá.

terça-feira, novembro 28, 2006

Impregnado


Constato, com demasiado tato, que hoje dizem muito sobre o dado. O dado, um tanto generalizado, é usado só porque é quadrado, e com seus seis lados, só pode ser jogado por alguem que, sistematizado, não consiga rolar como uma bola. Assola minha mente essa gente que não roda e nem se atola! Que tom dormente tem essa mente que não chora quando amola um faca cega! Doente re-insidente, residente dessa lógica gincanesca, que permanece como uma virgem a la putanesca, inpenetrável. Abra as pernas e deixe o dado pelado!

Dado o dado do postulado, como um fato fadado a seguir o passado, como dizer que algo pode vir-a-ser impropriamente a própria mente de algo demente, imprudentemente? Não é a mente, que não mente, impropriamente julgada numa vara - NÃO FÁLICA - de ser ela mesma um fato? Mas que ato covarde, mas que fato que cheira a poeira! Como se tudo fosse sempre o mesmo cinza, dizem não ao amarelo, como se amar-elo fosse algo indiferente, ver-de longe essa coisa é coisa pouca e de certo fica seco na bouca, pois a louca tragédia do elo, é como um grande cast-elo, castando sua própria destruição, como numa maldição inflingida a fingida vida presa a si.

Ver-melhó é preciso. E então o chuvisco poderá voltar a nos molhar, numa era sem azá.

sexta-feira, novembro 03, 2006

Para além do Positivismo


Para além do Positivismo
– Contribuições da epistemologia junguiana para uma epistemologia complexa.

Resumo

Pesquisamos, através de revisão bibliográfica, as contribuições da epistemologia junguiana para uma epistemologia complexa, observando onde e quando podemos dizer que há uma superação, mesmo que relativa, do modelo positivista. Se, de fato, Jung começou seu trabalho psiquiátrico utilizando-se de uma postura positivista, abriu-se um grande leque, posteriormente, de compreensões epistemológicas na teoria junguiana, contribuições estas que se mostram de extrema valia para uma epistemologia complexa.

1 - Introdução:

Abordaremos, no presente texto, o tema “contribuições da epistemologia na teoria de Carl Gustav Jung (1875-1961) para uma epistemologia complexa” na tentativa de reunir elementos de sua obra, e de pesquisadores do tema, que abordem as questões relativa ao “ato de conhecer” e reflexões acerca dos métodos de acesso ao conhecimento utilizados e propostos por Jung, tal como de que forma as contingências desse conhecimento se dão, mostrando inclusive onde, nos textos de Jung, ele utiliza pressupostos modelares ou paradigmáticos, científicos ou filosóficos. Procuraremos descobrir se existem ligações fundamentais e contribuições valorosas da epistemologia junguiana para uma epistemologia contemporânea e complexa.
O tema pareceu importante visto o preconceito que alguns pesquisadores, na academia, estabelecem com Jung e com a psicologia analítica, devido à falta de leitura de sua obra e vendo-a indiretamente através dos olhos de outros autores. Esboçaremos a pergunta que urge por respostas: “Existem contribuições na epistemologia utilizada por Jung para uma superação do positivismo em psicologia?”.
Para abordarmos a epistemologia em Jung, termos que abordar a complexidade e diferentes paradigmas[1] que se desvelam durante toda sua extensa vida e obra, desfazendo nossa típica unilateralidade, objetiva ou subjetiva, para analisar a relação sujeito-objeto e suas nuances. Jung viveu o bastante para passar por momentos de profunda mudança nos paradigmas da ciência e pode conceber um discurso acerca do conhecimento que possibilita a não hierarquização da ciência como saber único, como diz Mello “a ciência não é o saber, mas um saber” (Melo, 2002 1: 25). Em outras palavras: “A ciência, no entender da psicologia analítica, é uma teoria sobre o real, é um método, um instrumento ocidental, cujos conceitos são simples instrumentos destinados a facilitar a exploração da realidade do inconsciente. Logo, as teorias não são respostas definitivas trazendo o perigo de cedermos a ilusão de termos captado o todo, como se ao nomear o desconhecido tomássemos posse dele. A ciência seria uma modalidade de compreensão, culturalmente a mais valorizada e só se torna demolidora, quando reivindica para si o privilegio de ser a única e a melhor forma de apreensão (Jung 1968a apud Melo 2002 2)”.

2 – Metodologia

Este estudo foi realizado a partir da revisão bibliográfica da obra de C. G. Jung, assim como de pesquisadores do tema, “epistemologia na psicologia analítica”, como Heloisa Cardoso e Elizabeth Mello e de uma “epistemologia complexa” como Fernando Rey.

3 – Positivismo e Rompimentos.

Certamente não podemos descartar as influencias do positivismo e da objetividade no estudo e historia de Jung, especialmente porque ele começou utilizando-se de testes experimentais para abordar questões da psicologia freudiana, e só depois se aproximou de um estudo do conhecimento que Cardoso chama de “anti-positivista”. Para esclarecer o protótipo do positivismo e anti-positivismo citamos Cardoso: “o anti-positivista – é relativista, entendendo o mundo a partir dos indivíduos que o integram, só se podendo captar o significado de uma situação do ponto de vista do quadro de referência de seus participantes. Não existe qualquer conhecimento objetivo, podendo-se no máximo se chegar a um acordo inter-subjetivo” (Cardoso, 2002) enquanto “o positivista – procura explicar e predizer o que acontece no mundo, buscando regularidades e relacionamentos causais, através de pesquisas experimentais e da possibilidade de falsificação de hipóteses. Para ele, o conhecimento é acumulativo”. (ibid).
Jung na sua “primeira fase”, da ciência clássica, da “psicologia experimental, estudos comportamentais usando psicofísica e linguagem” (Melo, 2002 1), ainda mais próximo do modelo cientifico positivista utilizou-se de experimentos, estando numa perspectiva nomotética, que segundo Cardoso se refere à preferência do “(...) rigor técnico, a sistematização, a quantificação, os testes de hipóteses, usando questionários, testes de personalidade, instrumentos personalizados de pesquisa etc”. (Cardoso, 2002),
Jung disse: “Com as experiências de associações (1903), começou minha atividade científica propriamente dita. Considero-as como meu primeiro trabalho realizado na linha das ciências naturais. Foi então que comecei a exprimir meus pensamentos próprios. Depois dos Estudos Diagnósticos sobre as Associações (1903) apareceram duas publicações psiquiátricas: Psicologia da Demência Precoce (1907) e O conteúdo das Psicoses (1908). Em 1912 apareceu meu livro Metamorfose e Símbolos da Libido, que pôs fim à amizade que me ligava a Freud. Nesse momento – nolens volens – comecei a seguir o meu próprio caminho”. (Jung, 2005: 182).
Sobre a questão do trabalho experimental Jung nos diz em artigo de 1936 revisto em 1954: “Eu próprio conduzi durante vários anos um trabalho experimental; no entanto, através de minha ocupação intensa com neuroses e psicoses fui levado a reconhecer que – por mais desejável que seja a avaliação quantitativa – é impossível prescindir do método descritivo qualitativo. A psicologia médica reconheceu que os fatos decisivos são extraordinariamente complexos e só podem ser apreendidos através da descrição casuística. Esse método porém exige que se esteja livre de pressupostos teóricos. Toda ciência natural é descritiva quando não pode mais proceder experimentalmente, sem no entanto deixar de ser científica. Mas uma ciência experimental torna-se inviável quando delimita seu campo de trabalho segundo conceitos teóricos. A alma não termina lá onde termina um pressuposto fisiológico ou de outra natureza. Em outras palavras, em cada caso singular, cientificamente observado, devemos levar em consideração o fenômeno anímico em sua totalidade”. (Jung, 2006: 68).
Em sua época, no campo da psicologia, quem reivindicava para si o titulo de “ciência natural” era a psicofísica, além da psicologia experimental. Jung dizia, em 1924 que: “A psicologia analítica ou complexa – como também é conhecida – se distingue da experimental pelo fato de não isolar as diversas funções (funções sensoriais, fenômenos psíquicos etc.) e de não submetê-los aos condicionamentos experimentais a fim de explorá-los; pelo contrário, procura ocupar-se com a totalidade dos fenômenos psíquicos tal como ocorrem naturalmente, o que constitui um conjunto extremamente complexo” (Jung, 2002: 96-97). Aqui já se desvela a própria complexidade no estudo junguiano, complexidade que não permite um associacionismo ou elementarismo, mas procura estudar os fenômenos de maneira complexa, in situ, e não dissociados.
Ele se enfatizou, portanto, uma perspectiva qualitativa, mesmo que tenha começado utilizando uma base positivista, tal como Freud que, na época, ainda estava sobre uma grande influencia positivista, estava “sob a égide de uma perspectiva ‘fisiologista’, mecânica, hidráulica, ou seja, referente ao paradigma cartesiano-newtoniano”. (Melo, 2002). Apesar de todo o dito, a psicanálise já se apresentava como ruptura no que concerne ao inconsciente, inconsciente este que será postulado de maneira nova por Jung.
Segundo Fernando G. Rey em “Pesquisa Qualitativa em Psicologia” o qualitativo é além de uma simples metodologia, mas constitui uma epistemologia diferente do quantitativo e do positivismo. Ele diz: “A contradição entre o qualitativo e o quantitativo não se expressa instrumentalmente, mas nos processos centrais que caracterizam a produção de conhecimento” (Rey, 2002: 30). E é justamente para esse lado que Jung parece se encaminhar, quando rompe com Freud, onde “o rompimento com o seu mestre e amigo em função das criticas, não aceitos por Freud, que Jung faz, a época, a teoria psicanalista, principalmente, ao primado da sexualidade como causa da psicodinâmica individual” (Cardoso 2002). Neste momento, que pode ser demarcado quando Jung acaba de escrever “Metamorfoses e Símbolos da Libido”, que segundo Jung “(...) o capitulo ‘O Sacrifício’ me custaria a amizade de Freud. Nele expus minha própria concepção de incesto da metamorfose decisiva do conceito de libido e de outras idéias, que representavam meu afastamento de Freud”.(Jung 2005).
No seu momento inicial foi quando Jung fazia seus estudos psiquiátricos, no entanto, podemos dizer que mesmo neste momento Jung não foi totalmente absorvido por este modelo de ciência, visto sua ligação com os estudos de hipnotismo de Pierre Janet e seus contatos com Freud, alem dele mesmo citar que na sua época como psiquiatra ele observou, em contraposição à ciência da época que, “Em muitos casos psiquiátricos, o doente tem uma historia que não é contada e que, em geral, ninguém conhece. Para mim, a verdadeira terapia só começa depois de examinada a historia pessoal”.(Jung, 2005). Aqui já podemos observar um rompimento com a lógica generalizante e objetificante do positivismo. Trata-se, sempre, do contato entre seres humanos únicos.

4 - Complexidade

É importante ressaltar que Jung não foi arbitrariamente se distanciar da ciência clássica, por buscar um modelo excêntrico de compreensão, mas, ao contrário, foi levado a buscar um paradigma que fosse honesto com as dificuldades que se interpõe no estudo da psique pela própria psique. No livro “Arquétipos e Inconsciente Coletivo” ele nos explica algumas das dificuldades deste acesso à psique e, logo, ao ato de cognição: “(...) Na psicologia, um dos fenômenos mais importantes é a afirmação e, em particular, sua forma e conteúdo, sendo que o segundo aspecto deve ser o mais significativo, em vista da natureza da psique. A primeira tarefa que se propõe é a descrição e a ordem dos acontecimentos, seguida pelo exame mais acurado das leis de seu comportamento vivo. A questão da substância da coisa observada só é possível na ciência da natureza onde existe um ponto de Arquimedes externo. Para a psique falta um tal ponto de apoio, porque só a psique pode observar a psique. Conseqüentemente, o conhecimento da substância psíquica é impossível, pelo menos segundo os meios de que dispomos atualmente. Isso não exclui de modo algum a possibilidade de a física atômica do futuro poder propiciar-nos ainda o ponto de Arquimedes a que nos referimos. Por enquanto, nossas elucubrações mais sutis não podem estabelecer mais do que é expresso na seguinte sentença: assim se comporta a psique. O pesquisador honesto deixará de lado respeitosamente a questão da substância (...) Por maior que seja o seu significado para a vida individual e coletiva, faltam todos os meios à psicologia para provar a sua validade num sentido científico“. (Jung, 2006: 205).
Já a partir da idéia do inconsciente coletivo temos uma re-ligação com o mundo, uma ligação “ser-cosmos” que havia desaparecido com toda ciência clássica, elementarista, substancialista e causal. Os estudos elementaristas e substancialistas estavam sendo, na época dos estudos de Jung, ora ou outra, atacados pelas novas descobertas da ciência, em especial da física, “A noção de substancia dissolveu-se em probabilidades e ‘tendências para existir’. As conexões não-locais de partículas contradiziam a causalidade mecanicista” (Tarnas, 2005). Esta mudança de paradigma surgida no seio da física quântica abriu novos espaços a novas idéias, onde “A profunda interconexão dos fenômenos estimulava um novo pensamento holístico sobre o mundo, com muitas implicações sociais, morais e religiosas”. (ibid). Sobre o holismo citamos Melo “O termo holismo vem do grego holos: totalidade, refere-se a uma compreensão da realidade em função da totalidade integrada, cujas propriedades não podem ser reduzidas a unidades menores sem consideração desse entrelaçamento de elos que se interpenetram, mesmo que virtuais”.(Melo 2002 1). Jung era versado em todo esse conhecimento e inclusive “melhorou” sua teoria de arquétipos, distanciando-se mais do positivismo, com a ajuda de um grande físico quântico da época, Wolfgang Pauli.
Alguns autores ainda propõem que Jung seria idealista. Nosso estudo, no entanto, nos levou a outra compreensão da epistemologia junguiana, uma compreensão nem idealista, nem objetivista. Fato é que Jung propunha uma validade a alma e uma autonomia relativa a mesma, onde: “A psique cria realidade todos os dias. A única expressão que me ocorre para designar esta atividade é fantasia (...) é a mãe de todas as possibilidades onde o mundo interior e exterior formam uma unidade viva (...)”. (Jung, 1991). Ele diz: “Afinal, o que seria da idéia se a psique humana não lhe concedesse um valor vivo? E o que seria da coisa objetiva se a psique lhe tirasse a força determinante da impressão sensível? O que é a realidade se não for uma realidade em nós, um esse in anima? A realidade viva não é dada exclusivamente pelo produto do comportamento real e objetivo das coisas, nem pela fórmula ideal, mas pela combinação de ambos no processo psicológico vivo, por esse in anima. Somente através da atividade vital e especifica da psique alcança a impressão sensível aquela intensidade, e a idéia, aquela força eficaz que são os dois componente indispensáveis da realidade viva. Esta atividade autônoma da psique, que não pode ser considerada uma reação reflexiva às impressões sensíveis nem um órgão executor das idéias eternas, é, como todo processo vital, um ato de criação contínua.” (ibid: 63). Neste movimento, nos parece mesmo que Jung não seria nem nominalista[2], nem realista[3].Temos aqui, então, um ponto intermediário, ou o “terium”, e não mero idealismo ou materialismo[4]. Ele diz sobre o problema entre nominalismo e realismo: “(...) a divisão não pode ser resolvida discutindo-se os argumentos dos nominalistas e realistas. Para a solução, é preciso um terceiro ponto de vista, intermediário. Ao esse in intellectu falta a realidade tangível, e ao esse in re falta espírito” (ibid: 63).
Este é um dos pontos nevrálgicos da psicologia analítica: o falar da realidade da alma, desta como relativamente autônoma, assim como da validade das idéias, por exemplo, quando ele diz sobre as questões da fé: "No que se segue trataremos de veneráveis objetos da fé religiosa, e todos aqueles que se ocupam com isso correm o risco de ser reduzidos a pedaços pelo entrechoque das duas partes que discutem acerca desses objetos. Tal discussão parte do estranho pressuposto de que só é "verdadeiro" aquilo que se comprovou ou se comprova como sendo uma realidade física. Assim, p. ex., acreditam que o nascimento original de Cristo foi um acontecimento físico, ao passo que outros o negam, esta divergência de posições é logicamente insolúvel, e por isso seria melhor que os contendores deixassem de lado essas discussões estéreis que não levam a nada. Ambas as partes têm e não têm razão, e chegariam mais facilmente a um acordo se renunciassem à palavrinha "físico". O conceito de "físico" não constitui o único critério de uma verdade, pois há também verdades psíquicas que não se podem explicar, demonstrar ou negar sob o ponto de vista físico. Se houvesse, p. ex., uma crença geral de que em certo período da história o Reno tivesse corrido da foz para a nascente, tratar-se-ia de uma crença que é um fato em si, embora a sua formulação no sentido físico deva ser considerada como simplesmente inadmissível. Uma crença como esta constitui uma realidade psíquica, de que não se pode duvidar e que também não precisa ser demonstrada.
Os enunciados religiosos são desta categoria. Todos eles se referem a objetos que é impossível constatar sob o ponto de vista físico. (...)” (Jung, 2001: 1-2). Melo ainda enfatiza: “Jung deixa, em seu arcabouço teórico, implícita a idéia de movimento e de intencionalidade do próprio sistema, como algo vivo e que é a um só tempo em parte fechado, mas que inclui uma abertura. Reajustes permanentes são características de sistemas vivos; abertos e interconectados com o mundo, consigo próprio (perspectiva holística de Jung)” (Melo, 2002 B: 111).
Temos na psicologia junguiana uma valorização das contradições, fantasias, etc., e nesse momento que tentamos chegar o mais próximo possível do “todo”, não supervalorizando, inclusive, nenhum aspecto heurístico particular, mas todos que possam nos favorecer na pesquisa do humano em sua totalidade. Jung diz ainda em suas formulações iniciais, em 1910: “Contentei-me em conservar uma posição intermediária, que mantivesse a linha de simples consideração psicológica das coisas, sem tentar acomodar o material a este ou àquele princípio fundamental, hipotético apenas (...) apenas um especialista parcial poderia declarar como universalmente válido algum princípio heurístico, que fosse de valor especial para sua disciplina ou para seu modo pessoal de considerar as coisas” (Jung, 2002: 5-6).
Outros dois aspectos interessantes de serem observados para o desenvolvimento da complexidade, contradição e relatividade na epistemologia junguiana são a linguagem e o modo de apreensão singular diante do mundo. Para Jung a linguagem deveria poder ser “não-métrica, não-linear e não-espacial dependendo da realidade a que venha a se reportar, incluindo sempre as circunstancias do sujeito que observa e do seu objeto de estudo. Resgatam-se assim, as varias faces dos fenômenos que ficavam a margem da totalidade no racionalismo cartesiano”. (Melo, 2002 A) Jung fala em sua autobiografia que a linguagem “precisa ser ambígua, isto é, ter sentido duplo, se quiser levar em conta a natureza da psique e seu duplo aspecto. É conscientemente e com deliberação que procuro a expressão de duplo sentido para corresponder a natureza do ser, ela é preferível a expressão unívoca. (...) A expressão unívoca só tem sentido quando se trata de constatar fatos e não quando se trata de interpretação, pois, o sentido não é uma tautologia, mas inclui em si sempre mais do que o objeto concreto do enunciado”. (Jung, 2005).
Já o problema dos “tipos psicológicos” foi em grande parte epistemológico e surgiu através de uma observação fenomenológica da alma. Nenhum dos tipos, na verdade, pode reivindicar para si todo critério de verdade, pois incorreria, desta forma, a uma interpretação unilateral dos fenômenos, rechaçando apenas uma das possibilidades de se relacionar com o mundo, ou com a alma. Jung diz que “A idéia da uniformidade das psiques conscientes é uma quimera acadêmica que facilita a tarefa do professor diante de seus alunos, mas que desmoronou diante da realidade” (Jung, 1991). Poderíamos prosseguir com essa idéia até pontos mais altos, como as questões do estudo da ciência, pois fica evidente a inexistência de uma objetividade independente do sujeito, ao menos, enquanto este está preso a seu tipo unilateral. Segundo Jung, existe uma compensação entre inconsciente e consciência, i.é, uma compensação pela unilateralidade da atitude consciente. No inconsciente ficam as outras atitudes psicológicas “não valorizadas” e é bem provável que o inconsciente, ao emergir, seja parcial, ou seja, não se mostre de maneira objetiva, mas também tendenciosa. Ele poderia, por exemplo, aparecer num sonho através da função intuitiva, numa atitude introvertida, quando o sujeito é excessivamente extrovertido e sensual (no sentido da função sensação) em suas relações conscientes. Isso demonstra de que modo há também, no inconsciente, uma relatividade e uma complementação da consciência.

5 – Resultados

Observamos que existe uma saída de Jung do modelo positivista, no entanto, em sua obra fica claro que não se trata de uma ruptura absoluta, pois o Jung, ao que parece, preferia o caminho do meio, melhor dizendo, o caminho da síntese. Certamente Jung permaneceu com influências empiristas, como quando afirma sobre o inconsciente coletivo: “Apesar de me terem acusado freqüentemente de misticismo, devo insistir mais uma vez em que o inconsciente coletivo não é uma questão especulativa nem filosófica, mas sim empírica” (Jung, 2006: 55) assim como uma pretensão de pensar uma nova ciência em psicologia (não uma nova escola). Isso se torna evidente pelo próprio rigor que ele teve pelo conhecimento e, mesmo quando faz analogias históricas comparativas, explicita bem suas diferenças contextualizadas com o saber que propõe.
A epistemologia junguiana nos parece ser uma das grandes pioneiras de uma epistemologia complexa, além de uma “epistemologia da congruência”. Podemos ver dentro da obra de Jung uma série de modelos científicos e filosóficos que foram utilizados com rigor e sabedoria, mesmo que vários deles tenham sido depois abandonados. Já mais perto do final de sua obra Jung pareceu caminhar bem mais em contramão ao positivismo do que ele caminhou antes. Uma das contribuições mais fundamentais da epistemologia junguiana para uma epistemologia contemporânea e complexa parece ser a própria validade da alma e de seus conteúdos, mesmo quando irracionais, fantásticos ou supostamente fantasiosos. Essa noção já nos lembra a nova compreensão da subjetividade por alguns ramos da ciência cognitiva que não diz mais que: “o ser humano é uma tabula rasa” que introverte os “dados” (entendido num sentido objetivista e positivista), mas sim que subjetiva o “real”, i.e, toda apreensão é condicionada pela singularidade do sujeito e por uma subjetividade coletiva, seja por uma questão perceptiva, seja por uma questão emocional; então Rey nos diz: “Na nossa opinião, a subjetividade é um sistema complexo de significação e sentidos subjetivos produzidos na vida cultural humana, e ela se defini ontologicamente como diferente dos elementos sociais, biológicos, ecológicos e de qualquer outro tipo, relacionados entre si no complexo processo de seu desenvolvimento. (...) A subjetividade individual é determinada socialmente, mas não por um determinismo linear externo, do social ao subjetivo, e sim em um processo de constituição que integra de forma simultânea as subjetividades social e individual. O indivíduo é um elemento constituinte da subjetividade social e, simultaneamente, se constitui nela” (Rey, 2002: 36-37). Sobre isso, lembremos Von Franz, quando perguntada: “Com relação às discordâncias dos intelectuais que dizem que a psicologia junguiana não é ‘científica’, a idéia prevalecente é que a ciência precisa ser universal e, enquanto se considera o tom emocional e pessoal do indivíduo, o que se faz não é ciência, mas arte; desta forma, parece-me que a psicologia junguiana é uma ciência e uma arte”. Ao que ela diz: “Sim, você tem razão. O que se tem a acrescentar a isso é que uma emoção não é necessariamente não universal, se considerarmos a hipótese do arquétipo. Se eu tenho uma emoção pessoal que surgiu através de uma constelação arquetípica, então ela é, também, uma emoção universal. Dessa forma, os cientistas erram quando identificam sentimento e emoção como puramente subjetivos. Eu mesma posso ter uma forte emoção pessoal que é uma emoção arquetípica. Muitas pessoas podem ter essa emoção e, nesse sentido, ela é universal” (Franz, 2005: 237).

“Quod natura reliquit imperfectum, ars percifit”
O que a natureza deixa imperfeito, a arte aperfeiçoa.

6 – Bibliografia

Cardoso, H. O que você deve saber para entender Jung – 1. Fundamentos do pensamento junguiano. 2002
FRANZ, M. L, A Interpretação dos Contos de Fada, 3ª parte: “Perguntas e Respostas”, São Paulo: Paulus, 1990. 5ª edição, 2005.
JUNG, C. G., Memórias, Sonhos e reflexões. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. 2005. (1957-1960)
JUNG, C. G., O Desenvolvimento da Personalidade. Petrópolis: Vozes. 8ª edição: 2002.
JUNG, C. G., Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes. 2006
JUNG, C. G., Resposta a Jô. Petrópolis: Vozes. 2001. (1952).
JUNG, C. G., Tipos Psicológicos. Petrópolis: Vozes. 1991 (1920-1)
MELLO, E. Mergulhando no mar sem fundo. 2002, A
MELLO, E. Origem e Totalidade: Contribuições Epistemológicas Interdisciplinares para a Comunicação entre as Áreas do Saber: Psicologia, Física e Mitologia. 2002, B
REY, F. Pesquisa Qualitativa em Psicologia – caminhos e desafios. São Paulo: Pioneira Thomson Learning. 2005. (reimpr. Da 1. ed. De 2002).
TARNAS, R. A Epopéia do Pensamento Ocidental: Para Compreender as Idéias que Moldaram Nossa Visão de Mundo. 7ª edição. Bertrand Brasil: 2005.


[1] - “Paradigma vem do grego e quer dizer: para = alem de; deigma = manifestação. O que esta para alem da manifestação e, portanto, indica a direção que vira. Esta nos parece uma melhor acepção do que as traduções costumeiras como modelo ou arquétipo”. (Cardoso, 2002).
[2] - “Por nomialismo entendemos aquela escola que afirmava serem os assim chamados universais, ou seja, os conceitos genéricos e universais como a beleza, o bem, o animal, o homem etc., nada mais do que nomes (nomina), ou palavras ironicamente chamadas sopros de voz (flatus vocis)” (Jung, 1991: 40).
[3] - O realismo, contudo, afirma a existência dos universais antes da coisa (ante rem) e que os conceitos gerais existem em si mesmos, a modo das idéias de Platão”. (ibid, 40).
[4] - Materialismo não deve ser confundido com o materialismo histórico-dialético.