sexta-feira, dezembro 21, 2007

Cachos de antigos amores nos marca-dores

Cacho(s)-eira, na beira
D lemb-ranços o(dios)os
Quem, em desdem, massacra?
Com sua an(gelo)ical forma de deMOONio

O tempo passa e, assim, talvez
Tal vez possa ser excrescida
Numa me-móira guarda(dor)a e esquece(dor)a

Então, queridos amigos
No final
C guimos em frente
Apesar, por pesar, devagar
A cantar; a encantar
Muitas gentes...

... mesmo depois da FOGue(ira).

sexta-feira, novembro 16, 2007

Meio Assujeitado


Depois de tanto tempo esse blog intacto, continuará meio intacto, meio escrito...


Sujeito meio assujeitado,
Meio gente, meio gado
Correu mesmo estando parado
Como se fosse um condenado

Os relógios pararam meio dia
Um escuso senhor comeu o ovo
Fortalecendo toda ecolalia

Sujeito meio assujeitado,
Meio gente, meio gado
Correu feito um abestado
Como se fosse um iluminado

As certezas proliferam-se,
Como ervas daninhas do cemitério
Corroendo por dentro todo mistério

Ah! Senhor, se pudesse algo fazer!
Para reascender teu coração

As TV´s, o carro do som,
Você não ouviu as cores do seu sonho
Você deixou os mitos para trás!
Seu José, seu João
Dona Maria!

Alcatraz!
Peça ajuda
Vê-se escuta
O som do trovão
As favas o bom
Leia tua mão
Faça revolução!

domingo, outubro 21, 2007

DETENÇÕES E TRATAMENTOS AGRESSIVOS NA HISTÓRIA DA LOUCURA

Esse texto é parte de minha monografia de conclusão de Estágio no Juliano Moreira. O texto é copyleft, citem a vontade, mas utilizando as fontes... Boa leitura.

Na história da loucura podemos ver uma série de absurdos que foram realizados com pessoas que muitas vezes nem sequer tinham direito a defesa. A importância de revisarmos essa história para embasarmos nosso trabalho parece vir da necessidade de sempre darmos um passo atrás antes de projetar nossas sombras[1] numa população propicia para essa projeção, quer dizer, uma população que mesmo nos tempos atuais de reforma psiquiátrica ainda continua a margem, sendo mesmo insultada e ridicularizada em diversos locais pela população dita sã. James Hillman, psicólogo pós-junguiano, nos coloca uma consideração fundamental:
O primeiro é a máxima hipocrática: primum nihil nocere. Antes de mais nada, acima de tudo, primeiro, não faça mal, não prejudique nada. Antes de qualquer ação, ou plano de ação, antes de mais nada, considere o lado ruim antes do bom. Considere os riscos ao invés dos benefícios. Os gastos de pesquisa devem abordar os piores cenários possíveis e entender na íntegra a noção de “fazer mal” (Hillman apud Bernard, 1995i).

Na época cristã e medieval onde a compreensão sobre a loucura continha normalmente relação com a demonologia, encontramos no próprio malleus malificarum, obra visceral de caça as bruxas dos inquisidores Kramer e Sprenger, alguns pontos da terapêutica da loucura. Encontramos desde terapêuticas mais amenas até atos de violência imoderada, mas é importante considerar que: “para esses autores, o demônio aloja-se na cabeça de sua vítima e ali exerce controle, provocando a loucura e comportamentos de possessão e obsessão” (Tommasi, 2005, p.61).

Dentre as terapêuticas de Kramer e Sprender podemos lembrar que: “Um homem possuído por um demônio pode ser aliviado pelo poder da música, como foi Saul, pela harpa de David ou pelo poder de uma erva, ou pelo de qualquer outra substância material em que exista alguma virtude natural” (Kramer et Sprender apud Tommasi, p.61), mas ao mesmo tempo se após diversas orações, sessões, jejuns, privações se “o demônio não se retira, o endemoniado deve ser queimado vivo. Acreditava-se que dessa maneira o demônio também seria queimado” (Tommasi, p.62). Nessa época “a medida terapêutica usual era a fogueira” (op. cit). É possível acreditar, como Szasz, que neste momento: “as racionalizações teológicas e explicações mágicas serviram como fundamentos para a queima na fogueira, de milhares de doentes mentais” (Szasz et al apud Tommasi, p.63). Ou, ao menos, o que a época moderna chamou de doença mental.
Podemos ainda considerar que:

(...) na maior parte das cidades da Europa existiu, ao longo de toda a Idade Média e da Renascença, um lugar de detenção reservado aos insanos: é o caso do Châtelet de Melun ou da famosa Torre dos Loucos de Caen; são as inúmeras Narrturmer da Alemanha, tal como as portas de Lubeck ou o Jungpfer de Hamburgo” (Foucault, 2001, p.10).

A experiência padrão, no entanto, na Renascença foi a “Nau do Loucos” onde estes eram enviados a terras distantes e fizeram parte de todo imaginário renascentista, inclusive na própria pintura. A saída para o mar, para uma terra distante, estava toda carregada de simbolismo, muito além da mera utilidade social e limpeza da desrazão. Ainda nesta época, segundo Foucault (2001, p.11): “Acontecia de alguns loucos serem chicoteados publicamente, e que no decorrer de uma espécie de jogo eles fossem a seguir perseguidos numa corrida simulada e escorraçados da cidade a bastonadas. Outro dos signos de que a partida dos loucos se inscrevia entre os exílios rituais”.

A loucura na era clássica sai da imensidão do mar, da paradoxal relação prisão-liberdade na nau dos loucos e encontra seu lugar nos grandes hospitais, “O classicismo inventou o internamento, um pouco como a Idade Média a segregação dos leprosos; o vazio deixado por estes foi ocupado por novas personagens no mundo europeu: são os ‘internos’ ” (op. cit, p.53). Esse grande internamento não se dava pelo saber médico, saber este que só pronunciaria a “verdade” da loucura no final do século XVIII e inicio do século XIX com Pinel e Tuke. Na verdade essas casas de internação tinham intenções político-religiosas de repressão, “O internamento, esse fato maciço cujos indícios são encontrados em toda Europa do século XVII, é assunto de ‘polícia’” (op. cit, p.63). Quer dizer “O internamento seria assim a eliminação espontânea dos ‘a-sociais’” (op. cit, 79).

É importante considerar que no contexto do desatino, o louco era muito alem do que conhecemos pelas psicoses, mas eram considerados loucos muitas vezes os libertinos, os que viviam uma sexualidade considerada profana (ex: homossexuais), desempregados, bêbados, alquimistas, praticantes de magia, profanação, etc. Ainda na era clássica os loucos eram mostrados em grades para o público que os visitava como se eles fossem monstros, animais, apontando o dedo e refletindo sobre o que não se deve ser. Os guardiões de Bicêtre, por exemplo, eram conhecidos por fazerem os ditos loucos dançarem e fazerem acrobacias por meio de chibatadas (Tommasi, 2005).

O próprio corpo humano foi utilizado como medicamento, onde o corpo humano também é considerado, até pleno século XVIII, como um dos remédios privilegiados da loucura. Dentre esses remédios, diz Foucault (2001, p.303): “Os cabelos dos homens são bons para eliminar os vapores, se queimados e dados para que o doente aspire a fumaça... A urina do homem recém-expelida... é boa para os vapores histéricos”. O mais estranho para a mentalidade atual, no entanto, pode ser considerado os remédios das convulsões:

Mas são as convulsões, desde o espasmo histérico até a epilepsia, que atraem com a maior obstinação os remédios humanos – especialmente os que podem ser extraídos do crânio, parte mais preciosa do homem. Existe na convulsão uma violência que só pode ser combatida através da violência, e essa é a razão pela qual durante tanto tempo se utilizaram os crânios dos enforcados, mortos por mãos humanas e cujos cadáveres não tivessem sido sepultados em terra santa. (...) É também contra as convulsões que se utiliza sangue humano ainda quente, desde que não se abusasse dessa terapêutica cujo excesso podia levar à mania (op. cit).

As condições dos loucos na época clássica eram tão horríveis como as do inicio da era moderna, até o famoso gesto de Pinel e Tuke libertando os loucos das grades e amarras. Não que este gesto tenha dado fim as condições inumanas e ao cárcere dos “loucos”, mas certamente foi um avanço diante de tão horrenda situação. Deportes (apud Foucault, 2001, p. 148-49) nos dá um exemplo de como eram essas condições:

O infeliz que por mobília tinha apenas esse catre coberto de palha, vendo-se exprimido contra a muralha, na cabeça, nos pés ou no corpo, não podia gozar do sono sem ser molhado pela água que vertia dessa montanha de pedra. Em Salpêtrière, continua, a habitação é mais funesta e freqüentemente mais mortal. É que no inverno, quando das cheias do Sena, os cômodos situados ao nível dos esgotos, tornavam-se não apenas bem mais insalubres, como, além disso, refúgio para uma multidão de grandes ratos que à noite se jogavam sobre os infelizes ali presos, roendo-os onde podiam; encontraram-se muitas loucas, com os pés, as mãos e o rosto dilacerados pelas mordidas, muitas vezes perigosas, muitas das quais morriam. (...) Em Bethtleem a fim de conter um louco considerado furioso: ficava amarrado a uma longa corrente que atravessava a muralha, permitindo assim ao guardião dirigi-lo, mantê-lo na coleira, por assim dizer, do exterior; em seu pescoço havia sido colocado um anel de ferro ligado a um outro anel por uma curta corrente; este segundo anel deslizava ao longo de uma grossa barra de ferro vertical fixada em suas extremidades ao chão e ao teto de sua cela. Quando se começou a reforma Betheleem, encontrou-se um homem que durante doze anos vivera nessa cela submetido a esse sistema coercitivo.

Nas épocas mais contemporâneas, se o louco não era mais tratado como uma besta animal, isso não significa que o tratamento violento tenha se extinguido, mas tomou novas formas, um exemplo disso foi Ugo Cerletti que admitia a incompatibilidade da esquizofrenia e da epilepsia, incompatibilidade que ainda hoje até certo ponto é admitida, então ele sempre se perguntou de que forma gerar crises convulsivas em esquizofrênicos. Cerletti visitou certa vez um matadouro de porcos em Roma e observou que os porcos submetidos a choques elétricos antes de serem abatidos tinham crises convulsivas. “Foi uma iluminação as avessas! Cerletti concluiu que se poderia também provocar no homem uma convulsão, por corrente transcerebral, sem matá-lo” (Silveira, 2001, p. 11), assim em 1928 surgia o eletrochoque. “’Não, outra vez! É horrível!’ foram as primeiras palavras pronunciadas pela primeira vítima do eletrochoque” (op. cit).

Lembremos também as memoráveis súplícas de Antonin Artaud, internado no hospital de Rodez na França, para que parassem de lhe dar eletrochoques: Eis uma carta escrita por Artaud ao seu psiquiatra, em 1945:

O eletrochoque me desespera, apaga minha memória, entorpece meu pensamento e meu coração, faz de mim um ausente que se sabe ausente e se vê durante semanas em busca de seu ser, como um morto ao lado de um vivo que não é mais ele, que exige sua volta e no qual ele não pode mais entrar. Na última série, fiquei durante os meses de agosto e setembro na impossibilidade absoluta de trabalhar, de pensar e de me sentir ser...[i] (op. cit, p.12).

Outro tratamento que precedeu o eletrochoque foi o coma insulínico ou choque hipoglicêmico (método de Sakel), nesse tratamento a eficácia dependia de 30 a 40 horas de coma. “Tanto o coma insulínico quanto o eletrochoque provocam profunda regressão fisiológica e psicológica, apagando naqueles que são submetidos a esse tipo de tratamento as funções psíquicas superiores. Essa desmontagem da estrutura psíquica seria seguida, segundo seus adeptos, de uma reconstrução sadia” (op.cit).

Citemos Silveira (2001, p.12):

A perda de memória, em graus variados, em ambos os tratamentos de choque, poderá ser recuperada. E é precisamente nessa perda de memória, decorrente de possíveis ligeiras lesões cerebrais, que residiria a eficácia desse tratamento, isto é, o esquecimento dos acontecimentos que provocaram a psicose. E se durante a reconstrução da estrutura psíquica voltar a recordação dos acontecimentos motivadores dos distúrbios psíquicos?
Essa suposição é precisamente a mais aceita pelos adeptos dos tratamentos de choque. Valeria a pena esquecer os conteúdos nucleares das psicoses, ou antes, seria preferível trazê-los à tona, confrontá-los, tentar interpretá-los, metabolizando-os e mesmo transformando-os?

Chegamos finalmente a uma das mais complicadas invenções modernas, a lobotomia. Ela surgiu como método terapêutico em 1936, sendo criada por Egas Moniz, e seccionava fibras nervosas que ligavam os lobos frontais a partes subjacentes do cérebro. “A psicocirurgia é definida por W.Freeman como operação cirúrgica sobre o cérebro intacto, tendo por objetivo obter alívio para sintomas mentais” (op.cit). Para Moniz para curarmos pacientes com idéias fixas e comportamentos repetitivos temos que: “destruir arranjos mais ou menos fixos das conexões celulares que existem no cérebro, e particularmente aquelas que se relacionam com os lobos frontais” (Moniz apud Silveira, 2001, p. 12).

Depois da psicocirurgia os pacientes se tornavam dóceis e autômatos, além de ficarem muito prejudicadas as faculdades de abstração e imaginação, suas produções pueris e decadentes. Já as famílias e a dinâmica do hospital iam muito bem, gozando da tranqüila calmaria. (Silveira, 2001).

A explicação ética da época era de uma doçura incomensurável: “Em editorial – ‘A ética da leucotomia’ – publicado no British Medical Journal, em 1952, em defesa da psicocirurgia, pode-se ler este espantoso argumento: ‘Se a alma pode sobreviver à morte, certamente poderá sobreviver a leucotomia’” (op. cit, p.13).

Mediante tão brutais acontecimentos, de uma lógica da violência que até certo ponto foi derrubada por Nise da Silveira no Brasil, acreditamos na importância de relatar essa história dos tratamentos agressivos na loucura para podermos olhar de frente todas as atrocidades que já foram cometidas com esse público, para que não voltemos a incorrer nos mesmos erros. Mediante a ênfase dada por Silveira nesses fatos, nessa necessidade de modificação da psiquiatria de sua época, acreditamos ser vital o conhecimento dessa história justamente para clarearmos nossas condutas, não sendo iludidos nem mesmo por supostos saberes científicos que, mesmo em toda sua cientificidade, muitas vezes incorrem nos mais absurdos e deletérios enganos, talvez não no nível biológico, farmacológico, material, mas uma falta muito mais grave, uma falta de humanidade.

Lembremos, para o fechamento do capítulo, o poema de Beta (apud Silveira, 2001, p.13):
Os médicos dão muito remédio
E as enfermeiras para não terem trabalho
Só ficam gritando
Vou dar choque
Vou dar amarra
Ser louco é uma barra.
Beta










[1] - É importante que definamos o conceito de sombra. Por sombra entendemos tudo aquilo que é recusado pela pessoa e mantém-se inconsciente, quer dizer, abaixo do limiar da consciência. Desse modo a sombra não necessariamente fala de algo negativo, ela apenas fala do recusado, seja algo que seria extremamente benéfico para o sujeito ou não. Segundo Von Franz: “A sombra não é o todo da personalidade inconsciente: representa qualidades e atributos desconhecidos ou pouco conhecidos do ego – aspectos que pertencem sobretudo à esfera pessoal e que poderia também ser conscientes. Sob certos ângulos a sombra pode, igualmente, consistir de fatores coletivos que brotam de uma fonte situada fora da vida pessoa do indivíduo” (Jung, 2001, p.168).
[i] - Artaud, A. Ouvres Completes XI, p. 13. Gallimard, Paris, 1974.

sexta-feira, setembro 14, 2007

É amigos..


sábado, agosto 25, 2007

Fotograspirante

Que me importam os vultos? Os vultos dizem muito mais do que uma clareira numa noite de verão... versão acabada da neblina, tonteia as vistas dos visores. Só um idiota pode ser engolido por seus olhos. Aquele que de fato vê se esforça por nublar o mundo, acaba por chacoalhar as pedras. Os sonhos de verdade estão nas mãos.

Depois do estilete verbal de Von Darsê, as pessoas fecharam os olhos e abriram as bocas, línguas se entrelaçaram e massas viraram moças, maças fizeram-se em rostos e vermelhas frutas. Quantos cantos não saíram daquele lago aberto ao fechado. Mãos manearam os arquetes e fizeram salgadas comidas: está é a santidade da massa, fazer comida com. Aqueceram-se junto ao fogo, pois é o fogo que queimou a tristeza e a melancolia. E.T.ernidade.

Fraternos irmãos, se aconchegou de suas palavras Gagaya Mana. Que hoje seja um dia e não mais outro, que hoje seja uma noite e não mais outra. Vocês me escutam com as mãos e eu lhe falo com a pele: não queridos concubinatos, o concúbito não é de se fazer de paisagens! Um pintor que se rende a iluminação não passa de um holofote! Imbecil, não consegue criar! Imbecil, não consegue concertar! Imbecil, não consegue construir!

Os meus pés dançam e minha mente morreu para dar lugar a minha alma. A alma não sabe da linguagem, o automatismo da linguagem se contrabalanceia pela fluidez da língua. Não, amados, chega de fotógrafos! Roubam nossa almas as fotografias, roubam todo poder do deus do momento, Jihoku-Uhuban. Uhuban nos deu(s) a luz e a volúpia de tal forma que a forma se perdeu, meu corpo agora é corpo. O circulo, a reta, o hexágono são todos possibilidades. Ninguém nasceu para se perder em fotografias, ninguém nasceu para ser gravador de vozes, ninguém nasceu para repetir, ninguém nasceu para olhar no espelho. Idiotas, ainda não aprenderam o valor que o fogo tem! Idiotas, ainda não tomaram uma ducha de luar! Idiotas, não viram que a aurora era feita com corpos e salivas? Idiotas, não sabem ainda construir!

Meu ódio é de um amor tremendo, e assim me aniquilo, não de palavras, nem de imagens, não de sentimentos, nem de pensamentos. As respostas foram feitas para quem não sabe formular perguntas. Nada é tão visível quanto um neblina. A turvidão é mais reta do que o claridão. Aloha irmãos, toquem pois vossos corpos e estejam a espreita do matagal, pois é do mato que surge o que tem valia. O sapo pula e águia voa, mas ainda nossos espelhos não aprenderam a falar.

terça-feira, julho 10, 2007

Da árvore da montanha

Os olhos de Zaratustra tinham visto um mancebo que evitava a sua presença. E, uma tarde, ao atravessar sozinho as montanhas que rodeiam a cidade denominada Vaca Malhada, encontrou esse mancebo sentado ao pé da árvore, dirigindo ao vale um olhar fatigado. Zaratustra agarrou a árvore a que o mancebo se encontrava e disse:
“Se eu quisesse sacudir essa árvore com as minhas mãos não poderia; mas o vento que não vemos açoita-a e dobra-a como lhe apraz. Também a nós mãos invisíveis nos açoitam e dobram rudemente”.
A tais palavras, o mancebo ergue-se assustado, dizendo: “Ouço Zaratustra, e positivamente estava a pensar nele”.
“Porque te assustas? O que sucede à arvore sucede ao homem.
Quanto mais se quer erguer para o alto e para a luz, mais vigorosamente enterra as suas raízes para baixo, para o tenebroso e profundo: o mal”.
“Sim; para o mal!”, exclamou o mancebo. “Como é possível teres descoberto minha alma?” Zaratustra sorriu e disse: “Há almas que nunca se descobrirão, a não ser que se principie por inventá-las”.
“Sim; para o mal!”, exclamou outra vez o mancebo.
“Dizias a verdade, Zaratustra. Já não tenho confiança em mim desde que quero subir às alturas, e já nada tem confiança em mim. A que se deve isto?
Eu me transforma muito depressa: o meu hoje contradiz o meu ontem. Com freqüência salto degraus quando subo, coisa que os degraus me não perdoam.
Quando chego em cima, sempre me encontro só. Ninguém me fala; o frio da solidão faz-me tiritar. Que é que quero, então, nas alturas?
O meu desprezo e o meu desejo crescem a par; quanto mais me elevo mais desprezo o que se eleva. Que é que quer ele nas alturas?
Como me envergonho da minha ascensão e das minhas quedas! Como me rio de tanto anelar! Como odeio o que voa! Como me sinto cansado nas alturas!”
O mancebo calou-se. Zaratustra olhou atentamente para a àrvore a cujo pé se encontravam e falou assim:
“Esta árvore está solitária na montanha. Cresce muito sobranceira aos homens e aos animais.
E se quisesse falar ninguém haveria que a pudesse compreender, de tanto que cresceu.
Agora espera, e continua esperando. Que esperará, então? Habita perto demais das nuvens: acaso esperará o primeiro raio?”
Quando Zaratustra acabava de dizer isto, o mancebo exclamou com gestos veementes:
“É verdade, Zaratustra: dizes bem. Eu ansiei por minha queda ao querer chegar às alturas, e tu eras o raio que esperava. Olha: que sou eu, desde que tu nos apareceste? A inveja aniquilou-me!” Assim falou o mancebo, e chorou amargamente. Zaratustra cingiu-lhe a cintura com o braço e levou-o consigo. Depois de andarem juntos durante algum tempo, Zaratustra começou a falar assim:
“Tenho o coração dilacerado. Melhor do que as tuas palavras, dizem-me os teus olhos todo o perigo que corres.
Assim não és livre, ainda procuras a liberdade. As tuas buscas fizeram-se insone e inquieto de maneira excessiva.
Quere escalar a altura livre; a tua alma está sedenta de estrelas; mas também os teus maus instintos têm sede de liberdade.
Os teus cães selvagens querem ser livres; ladram de prazer no seu covil quando o teu espírito tende a abrir todas as prisões.
Para mim, és ainda um preso que sonha com a liberdade. Aí, a alma de presos assim torna-se prudente, mas também astuta e má.
O que libertou o seu espírito necessita ainda purificar-se. Ainda lhe restam muitos vestígios de prisão e de lodo: é preciso, todavia, que a sua vida se purifique.
Sim; conheço o teu perigo: mas por meu amor e minha esperança aconselho a não afastares para longe de ti o teu amor e a tua esperança!
Ainda te conheces nobre, assim como nobre te reconhecem os outros, que te guardam rancor e te olho com maus olhos. Fica sabendo que um nobre é para todos um obstáculo no seu caminho.
Também para os bons um nobre é um obstáculo no seu caminho, e se lhe chamam bom é tão-somente para o pôr de lado.
O nobre quer criar alguma coisa nova e uma nova virtude. O bom deseja o velho e que o velho se conserve.
O perigo do nobre, contudo, não é tornar-se bom, mas insolente, zombeteiro e destruidor.
Ah, eu conheci nobres que perderam a sua mais elevada esperança. E depois caluniaram todas as elevadas esperanças.
Desde então têm vivido abertamente com minguadas aspirações, e dificilmente traçam metas para mais de um dia.
“O espírito é também voluptuosidade” – diziam. E então se quebram as asas do seu espírito; arrasta-se agora de um lado para o outro, maculando tudo quanto consome.
Noutro tempo pensavam fazer-se heróis; agora são folgazões. O herói é para eles aflição e espanto.
Mas por meu amor e minha esperança te aconselho: não expulses para longe de ti o herói que há na tua alma! Santifica a tua mais elevada esperança!”
Assim falou Zaratustra.

quinta-feira, junho 21, 2007

Galerinha esperta, aqui ta sem post por enquanto, mas estou escrevendo para um outro blog também, esse aqui, que é meu particular, não vai parar ou falecer, no entanto... quem quiser ler os textos do outro blog deixo aqui o link, em franca exposição: http://dedoscruzados.blogspot.com

Esse blog tem sido feito com meus amigos Guerra e Mr.Durdem. Enjoy.

domingo, junho 10, 2007

Desterritorialização


Um sopro de vida. Toquei meus lábios aos dela. Sol passageiro, vento frio. Corri estando no mesmo lugar e fiz movimentos repetitivos. Seria possível algum prazer? Armários esvaziavam seus bolsos ao meu lado, lado a lado, percebi que eu também era um deles, um dos mais firmes, de pesadas amarras. Por Deus! Nunca me vi tão só.

Desejei por um minuto uma contração genital mecânica, tensão e descarga. Imaginei-me um computador. Fantasiei. O céu é muito azul pela manhã, mas está frio. Frio em torno de tantos armários, mas ninguém pode ver o que há dentro desses estranhos objetos. Por favor, não me julgue esta manhã. Tribunais e cárceres privados. O olhar dela é como uma lança atravessando um pequeno coelho. Sinto a desproporção de forças, meus olhos tremem, meu coração bate forte. Simpático, não é o moço da esquina, armários não são simpáticos, o sistema nervoso sim, agudo em medo.

Esconda-se, é o grito do fraco. Não é tarde demais, é o grito do esperançoso. Olhei ao meu lado e não havia café da manhã grátis. Não comi nada, sou um armário e isso me enerva profundamente. Meus fuzis queimam sem queimar, minhas paredes se tornaram quentes para evitar qualquer abertura. Minha sombra me espreita, mas deixo-a calada, pois o sol que em mim bate gera a escuridão projetada no chão rasteiro.

Meu metal derrete, já estou descendo ao chão. Talvez eu vaze por um bueiro qualquer e bóie junto com excrementos e outras imundices. Seria grato. Talvez eu possa ser comido por um rato que servirá de experimentos de laboratório. Seria ótimo ser dessecado. Será que satisfaria minha pulsão exibicionista? Estranhos sentimentos. Não sou mais um armário. Mostro-me ao mundo desesperadamente. Quando me tornei a história de uma história?

Afasta por favor! Esse olhar de repulsa, esse olhar julgador, essa cara de espanto. Trago a superfície os restos do esgoto. Sinto-me culpado. Talvez se eu tivesse ficado lá, talvez se eu ainda fosse um armário... Estranhas pessoas me olham, de jaleco branco, óculos e caras curiosas. Sou metal, não sou mais rato. Encaro-os. Solto raios, tremam! Chuva acida, desejo a morte. Morram! Sob a égide da lua meu metal se transforma em prata. Brilho, mas não sou artista. Talvez apenas um metaleiro. Um prateado para servir comida a sacerdotisas.

Após a chuva brilha um arco-iris. Ainda não tão brilhante. É um arco-iris de cores, de culpas, é um arco-íris que se forma da chuva necessária. Eu amo o arco-iris. Ele brilha para mim, e eu brilho para ele. Quisera eu vê-lo unido a lua numa orquestra, mas não me sinto harmônico. Não sou tão forte para ser um deus. Canto de alguma forma, pedindo o perdão da natureza. Não me deixe só. Sob o lastro de tragédias e maravilhas, vejo uma estrada. Caminho.

quinta-feira, junho 07, 2007

Ensaio sobre a Morte: Da defesa a libertação

Estou a muito tempo sem publicar nada, mas a maioria dos leitores desse blog, como me conhecem ou fora da Internet, ou por contatos de MSN e/ou orkut sabem que isso se deve a minha recente paternidade, alem de compromissos de estágio, faculdade, etc. Voltei a escrever neste pequeno texto, em linhas diretas e sem citações ou leitura de livros, algo um pouco mais informal. Não que eu não venha escrevendo, na verdade aquele artigo que publiquei aqui: “Para além do positivismo...” está agora mais que dobrado de tamanho e bem melhor em qualidade, mas só o publicarei pronto posteriormente. No momento voltemo-nos ao nosso tema, que achei interessante publicar mais para criar um referencial de debate e poder desenferrujar o blog - e meus dedos.

Vivemos numa época onde a morte é muitas vezes tratada de forma imprópria, ou seja, é tratada não com pessoas singulares, com suas metas e mitos individuais, mas é tratada como estatística. Nossos hospitais procuram ampliar a vida de qualquer maneira, como se essa fosse a verdadeira questão a ser colocada: concertar a máquina humana para ampliar sua durabilidade, proteger o computador de possíveis interferências que prejudiquem seu funcionamento adaptado ao mundo do trabalho, da família, em suma, da sociedade.

Qual é o sentido da vida? Esta seria uma pergunta coletiva, que se perde em respostas de livros de auto-ajuda, que só afastam a pessoa dela mesma, mas quando voltamo-nos a nossa própria história a “Coisa” se desvela: “Qual é o sentido da minha vida?”. Para mim, um jovem tocando a vida adulta, é difícil imaginar algum sentido mais profundo, uma contemplação e re-significação do que se passou em totalidade, no entanto, a pergunta sobre a morte pode gerar ares diversos. A morte se insinua na vida.

Já dizia Sartre que a morte é um ato singular, afinal, ninguém pode morrer por mim. Se eu morro pela religião, pela política, pela família, pela ideologia ou por uma nação, qualquer um pode morrer por mim, qualquer um poderia sacrificar sua vida em nome dos mesmos ideais, no entanto, quando lido com a morte, com meu estado de morrer, estou eu e minha negação, meu não-ser, frente-a-frente.

Se a vida é constituída de reversibilidade, isto é, se toda causa gera sempre o mesmo efeito – se voltando no tempo da resposta voltássemos sempre ao mesmo estimulo – saberíamos quando, como e talvez mesmo onde morrer, já que observando as diversas experiências alheias estaríamos mais ou menos precavidos quanto às possibilidades e probabilidades reais da morte, todavia, a coisa não é tão simples. Existe um tempo único, irreversível, um tempo acausal, não determinista, onde o “destino” pode ocorrer. Podemos estar num determinado momento numa grama extensa, sem nenhuma culpa, e sermos espancados pelos erros alheios, podemos ser atropelados por um motorista bêbado que disputava um pega. Existe algo de incontrolável, inconstruivel na vida e é esse tempo que nos coloca como abertura de possibilidade de sentido, mas não possibilidade de dominar a vida.

Deveríamos abandonar de vez o projeto gengiskaniano de poder-sobre para nos doarmos ao poder enquanto potencia, enquanto possibilidade de possibilidade. Dessa forma a morte ao ser um estado próprio em potencial é presentificada, e ao se presentificar ela nos coloca em relação ao mistério. Viver é entrar em contato com o sagrado. Se podemos morrer a qualquer hora deveríamos viver a vida com plenitude. Aqui abrimos as portas as escolhas, mas ao escolher sempre perdemos, escolher é decisão, de-cisão. Cindimos e perdemos nosso desejo de onipotência infantil: não podemos ser tudo, mas precisamos ser nos mesmos. Poderíamos entrar em outros conceitos existenciais como a responsabilidade, mas voltemos com a morte.

A morte nos faz tremer e certamente isso é relativamente cultural e relativamente arquetípico, já que sempre criamos rituais para lidarmos com a morte, existe uma necessidade de agüentarmos, suportarmos ela, além do fato da morte ser algo irrefreável, ontológico, por ser assim dizer. Poderíamos sobre um ponto de vista racional, como o da psicanálise, falar que os rituais e explicações alem da morte são mecanismos de defesa. Protegemos a nos mesmos da morte, do medo de morrer, dessa forma criamos rituais e religiões que embasem paraísos e vidas além da morte. Essa explicação é valiosa, no entanto, unilateral. Poderíamos dizer, então, que toda criação teórica é uma forma de defesa, uma forma de defesa contra a angustia da relação que envolve o “inferno que é o outro” ou uma tentativa teleológica de completar a Falta primordial que sentimos no rompimento da relação simbiótica com o Outro, a função materna.

Muito justo. No entanto, teríamos também que considerar mesmo qualquer modo de abertura de possibilidades como defesa, no final, os modos de defesa do ego poderiam ser ampliados a quase todos os tipos de fenômeno reduzindo a vida humana a uma procura de evitar a dor. Este princípio racional e causal é insuficiente para toda explicação, em primeiro lugar porque ignora o social, as flexões culturais que podem levar a um tipo de comportamento, seja religioso, seja de formação teórica, teológica em relação a morte ou a outros fenômenos. Em última análise, a partir do referencial causal, poderíamos dizer que generalizar o mecanismo de defesa é uma defesa contra aspectos irracionais da vida.

Dito isto podemos também abrir outras portas de observação dos modos de lidar com o morrer. Os modos de atribuição de sentido a vida, na relação com a visão da morte, abrem portas tanto de comportamentos diferentes e próprios (singulares), como pode ser um encontro do sentido da vida que estava latente, um sentido que faz a pessoa encontrar sua totalidade. Da mesma forma o próprio stress, por exemplo, considerado prejudicial pode ser algo que abra novas portas, como um atleta stressado que vence uma corrida por causa da pressão exercida sobre ele, de certa forma ultrapassando seus próprios limites.

Além do que, a partir de um referencial finalista, poderíamos questionar: “Qual o sentido de reduzirmos todos esses comportamentos a mero fator defensivo?”, “Aonde queremos chegar com isso?”. O referencial do sentido pode tanto se tornar unilateral, dogmático, como permitir suportar situações insuportáveis, é como disse Nietzsche: “Quem tem um porque viver pode suportar quase qualquer como”, o sentido pode ultrapassar barreiras biológicas e sociais. Se é fato que dificilmente escaparemos aos condicionamentos da vida coletiva, de ser um decadant, por outro podemos tentar nos aventurar. A morte é o que permite essa aventura, sem a morte, num sentido de perda total da consciência, do ego e do desligamento dos laços que mantinham a unidade corpórea e seu funcionamento, nunca poderíamos estar em devir.

Num paralelo cosmológico, é necessário sair do pré-universo quântico, onde não existia tempo nem espaço, para conhecer polaridades, vida e morte, eu e outro, matéria e anti-matéria, a morte pode ser, portanto, um retorno, um voltar-se a nossa origem e a nossa totalidade. Sem a morte não há vida.

quinta-feira, maio 03, 2007

De-lírio.


Delírio = "Esta palavra deriva de lira, sulco, de modo que delirio significa exatamente afaster-se do sulco, do caminho reto da razão" (Foucault, Hist. da Loucura, 237.. extraido de James, dictionnaire universel de médicine).


É preciso delirar. "A morada do homem é o extraordinário". Heráclito de Éfeso

quarta-feira, maio 02, 2007

Love Hate Love

Texto de Felipe Liro.

“Eu te odeio! Te odeio do fundo da alma! Te odeio do fundo desta casa! E é aqui no fundo deste solo que vou te enterrar! Eu não preciso mais de você. Eu odeio você. Eu odeio vocês! Todos vocês! E todos vocês pagarão...”.

O Medo, que antes tão alegre, sorria e batia palmas enquanto se deleitava assistindo a cena virou-se para ele agora como se olhasse um espelho, os olhos vidrados em si mesmo. E pronto. Não havia mais Alegria. Esta jazia ainda fresca, ensangüentada no chão, caída aos seus pés, com eco surdo do baque de seu corpo ainda ecoando. E tremendo este também caiu, sem nem mais uma palavra. Não havia mais Medo.

“ Não preciso do Medo. Nem dele, nem da Alegria, nem de você! Vivo de mim mesmo.
Descobri hoje, quando vi o Orgulho cair no chão de joelhos, chorando e rastejando e implorando por você. POR VOCÊ! Patético e idiota. Que morresse como homem, mas não, ele implorou. E ele chamou, clamou por você... e o que você fez? Você não o deixou, e o deixou doente”.

“Onde esta a Paz? O que você fez com minha filha?” Perguntou aflito. “A Paz?” Respondeu. “Ha muito esta vinha sendo atormentada pelo Desespero e pela Desconfiança. Matei os três. Cansei de todos. Só haverá espaço para mim aqui dentro”.

Ele deu um passo à frente, sua face contorcida de si mesmo, seus olhos frios como água, brilhando como fogo.

“Não há mais Desespero, somente eu. Em minha lucidez eu sou forte!” Ele gritou. “Não há mais Coragem para resistir a mim, para se desculpar, perdoar, voltar ou seguir em frente. Somente eu.”!

“Não, não! Não a Paz, ela não...” ele murmurava ajoelhado entre soluços e lagrimas junto a Tristeza. A Esperança ruiu sob seu próprio peso, as mãos juntas ao peito, respirando com dificuldade.”

“NÃO PRECISO DA PAZ IRMÃO!” ele berrava enquanto chutava o corpo desfigurado da Calma, caída naquele chão vermelho, que parecia pulsar com a violência de cada murro dado. “DESDE QUE NASCEMOS NESTA CASA, ELA NUNCA OLHOU O GEMÊO BASTARDO NOS OLHOS!”.

“Mas a Esperança... olhe para ela, ela ainda vive”.

“Não preciso da Esperança! Após anos com ela não senti nada a não ser dor!”.

“Você é louco...”.

“E você um hipócrita. Você só pensa em você. Você é egoísta. Você separa a todos tanto quanto eu com tuas mentiras e fantasias que prometes, desejas e contas aos quatro cantos! Mas eu assumo a mim, abraço a mim e o que sou, enquanto você escorrega em si mesmo”. Ele dizia mergulhado em si. “Não sabes que no fim de tudo apenas eu sou verdadeiro? Apenas eu sou eterno! E você não passa de algo que trai os que te abrigam em um incesto macabro com teu filho. Teu filho que devora os homens por dentro enquanto você os joga de quatro no chão. Mas não mais! Enterrei o Ciúme! Porque eu me amo! Eu me amo enquanto você se odeia. Eu sou você e você eu”.

Dito isto se manteve parado em seu lugar, observando o outro se derretendo em choro. Não teve o prazer de matá-lo. Preferiu deixá-lo se matar afogado em suas próprias lagrimas, como ele sempre ameaçou fazer. Agora, com o Amor morto, ele olhou ao redor da casa fria, enchendo o coração com a fumaça de um cigarro, enquanto assistia os últimos suspiros da Esperança em sua agonia. E assim morreu também a Tristeza, com um sorriso irônico no rosto. Agora não havia mais nenhuma emoção na casa.

E o coração, agora vazio, vive assombrado para sempre pelo o pranto daquele que apunhalou o Ódio quando este possuía apenas a si para odiar. Pois nem o ódio vive sozinho. Nada vive sozinho, apenas ele. O ultimo deles. O único verdadeiro.
A Solidão.
Quem nunca se sentiu sozinho?

sexta-feira, abril 27, 2007

Conversas sobre a Maioridade Penal.

A discussão sobre a diminuição da maioridade penal volta a aparecer, agora em decorrência da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) ter levado adiante o desejo desta nova regulamentação. Já teve sua primeira vitória no congresso e continua avançando por meio dos atos dos senadores “conservadores” e de direita, que tem o respaldo de grande parte da mídia “burguesa” e de uma parcela da população engolida pelo discurso reacionário.

No momento a diminuição seria para 16 anos em crimes chamados “hediondos”, além do trafico de drogas, no entanto isso é apenas uma parte do desejo da reacionária oligarquia. O deputado e ex-coronel Alberto Fraga, por exemplo, sugere que a idade limite deva ser fixada aos 11 anos de idade. É nesse ritmo que a diminuição da maioridade penal progride e tal como ela, os resultados práticos só podem ser funestos. Ao futuro qual será a nova diminuição, 4 anos, perguntar-se-á, pois não se vê pequenos meninos que nada tem tentarem “roubar”?

Em termos internacionais, em relação ao nosso próprio Zeitgeist (espírito da época), a diminuição é pouco embasada, pois o Brasil conta com uma média de crimes de jovens inferior a média que, pela ONU, é de 11,6%, enquanto o Brasil se encontra com 10%. No Japão, por exemplo, essa média é de mais de 40% e, no entanto, coisa estranha, a idade penal é de 20 anos. Qual é esse desejo de encarceramento que tanto o brasileiro precisa? Será que também não há uma confusão relacionada a uma criminalidade excessiva que é imputada aos jovens? Ou se trata do sensacionalismo promovido pelas emissoras quando há um jovem envolvido em algum crime hediondo como o de João H.?

Será mesmo que ainda acreditamos que é apenas através da violência e da tortura que as situações podem ser modificadas? Isso mostra a falta de perspectivas de outros tipos de relação e organização social e de inter-relações numa grande parte do imaginário popular. A solução é falar de um outro, de um “monstro” o qual não possui humanidade, é coisa, objeto. Ora, isto antes de ser algo que se relacione linearmente com os fatos é uma invenção, claro, com projeções energeticamente muito fortes. Não se trata de admitir essa mentalidade americanizada como efeito da violência dos jovens. Desta forma temos que nos perguntar de que forma a paranóia coletiva influi para esta realidade. Um medo de tudo, de todos, que impede as pessoas de saírem de casa, de se relacionarem e de viverem. Um medo que torna melhor uma solução que desumaniza o outro do que uma solução que o veja como humano, como parte também de fiações diversas, sociais, econômicas, imaginarias. Se pudermos falar alguma coisa que o ser humano é, acima e além de tudo, é possibilidade. Infelizmente isto parece estar sendo perdido.

Dentre o publico mais pobre, assim como na classe média e alta, é comum encontrar defensores dessas posturas carcerárias e mais radicalmente de direita, por exemplo: pena de morte. Vemos ai de que forma há uma ampliação da rede conservadora que elimina qualquer coerência de classes, o que vemos hoje é uma luta desumana pelo capital, tomado de forma divinizada. Não só isso, mas também um forte desejo de um grande Pai com os mil olhos de Argos. O ser humano é segundo plano.

Todos sabem da insuficiência das prisões, e também das “prisões” juvenis como padre Severino, no entanto, perguntemo-nos, quais seriam as conseqüências práticas da diminuição da maioridade penal? Primeiramente podemos cogitar que teríamos ou prisões individualizadas para menores, o que é muito pouco provável, ou estes seriam jogados nas prisões comuns. Com isto teremos, ao contrário de uma diminuição “de criminosos” nas ruas, uma especialização. Jovens agora não só com a experiência das ruas, mas com a experiência hiper-especializada das cadeias. Mestrado em criminologia, ou melhor, traficologia (infantil aquele que crê que o trafico e sua decorrente “guerra” será resolvida com medidas totalmente alheias a sua “essência”).

Estranho pensamento é o dos que imaginam que os jovens que cometem delitos ficam sem punição, ao contrário, são também levados a especializações do crime, a exemplo do que acontece no Padre Severino e outros. São prisões, certamente. O que mudaria com a lei seria o agravamento dessa situação miserável, o agravamento do desejo de vingança social com os menores. Certamente não há desejo algum de re-abilitação... Será que isso ainda existe?

Se, por um lado, é muito valido aqui o ditado: audiatur et altera pars (ouça-se também a outra parte), por outro temos que nos posicionar. É com razão que temos repulsa a toda morte e fealdade, com razão que vemos com horror a morte de João Helio e de tantos outros. Só podemos agradecer que ainda não tenhamos virado robôs, no entanto, o pensamento direitista só poderá no levar a mais guerra, a mais desigualdade e a mais humilhação.

Em Matheus 5, 14 lemos: "Vos estis lux mundi" (Vós sois a luz do mundo). É a população, i.e, nós mesmos, que deveríamos tomar medidas efetivas que alterem este quadro de coisas, mas como sempre preferimos continuar nosso jogo de projeções. Não me espantaria, neste estranho momento, o pedido de lideres fascistas pelo próprio povo. Nos colocamos como fracos, sem responsabilidade, é o “outro”, este “monstro inato” o culpado pelas atrocidades sociais. Nós, cidadãos de bem, não temos culpa alguma. Estranho pensamento. Mas ainda há esperanças, pois é no caos onde brilham estrelas cintilantes, de onde emerge centelhas das mais diversas. Novas consciências, novos mundos.

Ainda assim, mesmo em tempos onde a própria população miserável joga contra ela mesma, há de haver algum possibilidade de mutação, de transformar esta matéria bruta em ouro, rubedo.

sexta-feira, março 30, 2007

O Gato








O animal: irracional, ao menos ao julgar positivo, onde o animal seria a negação da razão em relação ao referente: Homem. Claro que o gato foge as categorias de macho, ou ao menos, do macho “dominante”. O gato, noturno, de identificação lunar, maternal, independente; seu simbolismo seria usado por séculos em diferentes metáforas, desde as mais reacionários (geralmente sacaniando-o) até as revolucionários (em algumas ocasiões louvando-o). Nise da Silveira em “O mundo das imagens” diz que os egípcios, p. ex., veneravam três deusas leoas – Sekhmet, pekhet e Tefnet -, todas a mesma divindade.
“Sekhmet, a poderosa, é a deusa das batalhas, que lança fogo pela enorme goela. Pekhet desencadeia torrentes devastadoras nos desertos do leste, onde habita. Tefnet, sujeita a grandes cóleras, emite fogo pelos olhos e pela boca. Mas nem sempre essas deusas se apresentam sob aspecto tão terrificante. Elas podem metamorfosear-se em gata, tornando-se assim dóceis e amáveis. Neste caso, seu nome é Bastet, a benévola”.

Por que falo de gatos, ou de felinos? Estranho bicho. Lembro-me primeiro do blog Kato Nigra, especialmente o post de 07 de junho de 2006 (http://katonigra.blogspot.com/2006_06_01_archive.html) donde JH trata do simbolismo desse animal: “é característica das contraculturas a contra-utilização dos signos da cultura oficial. se o gato preto é agouro e má sorte para a simbologia ocidental-cristã, vira vigoroso símbolo de rebeldia nas mãos dos artistas-operários” e ainda busca um exemplo histórico onde o gato “para os sindicalistas da IWW (Industrial Workers of the World), representava a sabotagem, a ação direta dos trabalhadores contra o capital” (ver imagem 1). De fato é Proudhon que pinta “a liberdade sob a forma de uma mulher segurando uma lança com o barrete frígio na ponta e tende a seus pés um gato. Ao contrário, Napoleão detestava gatos” (Silveira, op. cit). Paul Klee que fez a pintura “Gato e Pássaro” (imagem 2) em 1928 diz: "A coisa mais estranha é que eu não posso viver sem um gato. De um cão nunca me tornarei escravo, mas um gato é outra coisa, não é um animal. Um gato encontrado surge-me sempre como dono de um destino". Paul Klee (Pintor Suíço) 1879-1940.

No entanto, como dissemos, o gato foi muito utilizado por culturas reacionárias e, especialmente, por culturas que negavam a própria natureza (em conseqüência a mulher? Esta deusa que traz o homem ao mundo), este sim fundamento essencial para negar o simbolismo do gato. Segundo Jung tanto Perséfone (Koré) como a “Mãe Divina” eram representadas pelo gato. Entre as culturas que negavam o gato podemos encontrar a época medieval onde “Poemas medievais celebram vitórias do rei Arthur sobre gatos-demônios. Nas festivas fogueiras da Páscoa, que da Idade Média se estenderam aos tempos modernos na Europa, gatos eram comumente queimados vivos como substitutos de bruxas e demônios. Ainda no ano de 1648, em Paris, Luís XIV, coroado de rosas, acendeu com as próprias mãos a festiva fogueira onde lançou um saco repleto de gatos vivos”. Perguntemos à história: quem era o verdadeiro “feiticeiro”?

Ao falarmos das projeções desses simbolismos temos que falar que uma projeção não se da sem um receptáculo adequado, por mais que o projetado não se confunda com a projeção. Falo do gato porque o sei independente, belo, e o gosto. Minha tia tem um gato e ela tem um grande apreço por magia e misticismos, para ela essa incrível figura é também uma espécie de defensor da alma, de maus augúrios. De fato Cornélio Agripa em “De Occulta Philosophia” dizia, em estranhas palavras, que os gatos seriam da mesma natureza da menstruação e que com ambos“muitas coisas maravilhosas e milagrosas podem ser trabalhadas pelas feiticeiras”. O vasto simbolismo da feiticeira se alia ao gato, isto é, a mulher e sua ligação com o espiritual. Não é sem nexo que muitos shamans se vestiam de mulher para entrar em contato com o mundo dos espíritos.

domingo, março 25, 2007

Crise e Tentativas de Mutação na Psiquiatria Atual (PARTE 1)


OBS: O texto a seguir é do livro, extremamente recomendável, "O Mundo das Imagens" de Nise da Silveira. É um pequeno trecho apenas do primeiro capítulo, o qual ainda continuarei (mas não finalizarei) na PARTE 2 do post. As notas do livro estão como notas 1, 2, 3.. etc. no final do texto e as notas que eu inseri, para ajudar dentro do possível a leitura, estão como notas A, B, C.. valeu galera, boa leitura :P



Crise e Tentativas de Mutação na Psiquiatria Atual

É impressionante a persistência da influência de Descartes, dominante desde o século XVII, no que se refere ao conceito de relações corpo-psique sobre a medicina científica.
O corpo seria uma complexa máquina e, conseqüentemente, as doenças resultariam de perturbações dos mecanismos que compõe essa grande máquina. A função do médico seria, portanto, atuar por meios físicos ou químicos para consertar enguiços mecânicos.
A Razão, privilégio do homem, estaria muito acima hierarquicamente, funcionando independentemente do corpo e comandando emoções e sentimentos. O médico pouco teria que se ocupar desses fenômenos. Foi sobre essa estrutura básica que se construiu o modelo médico. Entretanto, acontecia muitas vezes que a própria Razão desvairava, o homem a perdia. Era a loucura. Surgiram médicos especialistas nesses fenômenos. Apresaram-se eles a submeterem-se aos princípios do modelo médico. A Razão, agora a psique, passava a ser vista como epifenômeno da máquina cerebral. Cabia-lhes, por bem ou por mal, consertar descarrilhamentos dessa máquina que saíra dos trilhos da Razão.
Passaram-se séculos. Mas é ainda tão forte o clima de opinião cartesiana que, segundo Capra, os psiquiatras, “em vez de tentaram compreender as dimensões psicológicas da doença mental, concentraram seus esforços na descoberta de causas orgânicas para todas as perturbações mentais”[1].
Alguns tipos de doença pareciam dar-lhes razão, tais como a meningoencefalite crônica descrita por Bayle, a arteriosclerosa cerebral, as demências senis. Uma onda de entusiasmo levantou-se então em busca das regiões do cérebro responsáveis pelas doenças psíquicas. Entretanto, muitos outros distúrbios psíquicos escapavam tanto às pesquisas anatomopatológicas, quanto às mais acuradas investigações bioquímicas. Era difícil encaixá-las no modelo médico.
Aos poucos, uma contracorrente começou a crescer, em oposição ao modelo cartesiano.
Estaremos vivendo enfim um momento de mutação?

Crítica ao modelo médico tradicional e sua base cartesiana

Os tratamentos extremamente agressivos utilizados para consertar à força a máquina doente passaram a ser questionados. Quais seriam a rigor suas bases científicas?
Eletrochoque. Ugo Cerletti admitia a incompatibilidade entre a esquizofrenia e a epilepsia. Mas como conseguir que um esquizofrênico apresentasse crises epilépticas? A luz se fez para Cerletti quando ele visitou um matadouro de porcos em Roma. Por que o grande psiquiatra teria se sentido atraído a visitar um matadouro de porcos? Ali ele verificou que os porcos submetidos a choques elétricos antes de serem abatidos apresentavam crises convulsivas. Foi uma iluminação às avessas! Cerletti concluiu que se poderia também provocar no homem uma convulsão, por corrente transcerebral, sem matá-lo. Assim nasceu em 1928 o eletrochoque, que ainda hoje é utilizado. “Não, outra vez! É horrível!”, foram as palavras pronunciadas pela primeira vítima do eletrochoque.
Muitos anos mais tarde, certamente depois de inúmeras súplicas anônimas, ouvimos os desesperados apelos do escritor francês Antonin Artaud, internado no hospital de Rodez (França), para que cessassem de aplicar-lhe séries de eletrochoques. Eis uma carta escrita por Artaud ao seu psiquiatra, em 1945:
“O eletrochoque me desespera, apaga minha memória, entorpece meu pensamento e meu coração, faz de mim um ausente que se sabe ausente e se vê durante semanas em busca de seu ser, como um morto ao lado de um vivo que não é mais ele, que exige sua volta e no qual ele não pode mais entrar. Na última série, fiquei durante os meses de agosto e setembro na impossibilidade absoluta de trabalhar, de pensar e de me sentir ser...”[2]
Outro tratamento muito preconizado dentro do modelo médico, que precedeu de pouco o eletrochoque, foi o choque hipoglicêmico ou coma insulínico (método de Sakel), cuja plena eficácia exigiria de trinta a quarenta horas de coma. Tanto o coma insulínico quanto o eletrochoque provocam profunda regressão fisiológica e psicológica, apagando naqueles que são submetidos a esse tipo de tratamento as funções psíquicas superiores. Essa desmontagem da estrutura psíquica seria seguida, segundo seus adeptos, de uma reconstrução sadia.
A perda de memória, em graus variados, em ambos os tratamentos de choque, poderá ser recuperada. E é precisamente nessa perda de memória, decorrente de possíveis ligeiras lesões cerebrais, que residiria a eficácia desse tratamento, isto é, o esquecimentos dos acontecimentos que provocaram a psicose. E se durante a reconstrução da estrutura psíquica voltar a recordação dos acontecimentos motivadores dos distúrbios psíquicos?
Essa suposição é precisamente a mais aceita pelos adeptos dos tratamentos de choque. Valeria a pena esquecer os conteúdos nucleares das psicoses, ou antes, seria preferível trazê-los à tona, confrontá-los, tentar interpretá-los, metabolizando-os e mesmo transformando-os?
Lamentavelmente, recrudesce uma onda de tratamentos ainda ligados a métodos que já pareciam superados(A), Assim, a Associação Norte-Americana de Psiquiatria recomenda que seja ampliado o uso de eletrochoque, agora sob o controle moderno da computação (eletrochoque computadorizado).
Lobotomia. Outra conquista do modelo médico, a lobotomia surgiu na terapêutica psiquiátrica em 1936. Criada por Egas Moniz, seccionava fibras nervosas que ligavam os lobos frontais a partes subjacentes do cérebro. A psicocirurgia é definida por W.Freeman como operação cirúrgica sobre o cérebro intacto, tendo por objetivo obter alívio para sintomas mentais. Segundo Moniz, para obter a cura de pacientes que apresentam idéias fixas e comportamentos repetitivos, “temos de destruir arranjos mais ou menos fixos das conexões celulares que existem no cérebro, e particularmente aquelas que se relacionam com os lobos frontais”[3].
Por sua vez, afirma Freeman, o lobo frontal é o local de escolha para operações destinadas a aliviar desordens mentais, pois já foram realizadas, por vários cirurgiões, intervenções sobre os lobos temporal, parietal e occiptal, sem resultados concretos. E mais: a leucotomia(B) foi também experimentada, em outras modalidades de doenças mentais, inclusive em velhos e crianças.
Tateamentos, experimentações sobre o cérebro humano!
Embora no correr dos anos a técnica da lobotomia tenha reduzido sua área de ação e se haja mesmo sofisticado bastante (lobotomia transorbital, leucotomia, topectomia, cingulotomia, etc), ainda assim a substância cerebral é atingida de maneira irreversível. Todas essas técnicas costituem, portanto, um atentado à integridade do homem em seu órgão mais nobre.
Muitos indivíduos submetidos a esses tratamentos tornavam-se mais calmos, às vezes mesmo verdadeiros autômatos. Ficavam muito prejudicadas a capacidade de abstração e a imaginação. Suas produções, segundo veremos adiante, tornavam-se pueris e decadentes. As famílias e o ambiente hospitalar, porém, passavam a gozar de cômodas tranqüilidade.
A psicocirurgia vem perturbando a consciência de alguns psiquiatras, pois lhes repugna a destruição de parte do cérebro normal anatomicamente, por mínima que seja, transformando uma desordem funcional potencialmente recuperável numa lesão orgânica para a qual não há tratamento[4] (C).
Em editorial – “A ética da leucotomia” – publicado no British Medical Journal, em 1952, em defesa da psicocirurgia, pode-se ler este espantoso argumento: “Se a alma pode sobreviver à morte, certamente poderá sobreviver a leucotomia”.
Quimioterapia. Os tratamentos citados perderam muito do seu prestígio com o advento da quimioterapia a partir do início da década de 50. As pesquisas do cirurgião Laborit o levaram à descoberta de uma substância próxima dos antialérgicos, possuidora de curiosa ação “de desconexão artificial”. Laborit apercebeu-se imediatamente do interesse que essa substância “milagrosa” poderia ter para a psiquiatria. Deu-lhe o nome de “chlorpromazina”, logo comercializada em larga escala.
Seguiram-se outras pesquisas de caráter químico, sempre visando o controle sobre o mesencéfalo, a formação reticular(D) e, supostamente, poupando as funções corticais.
Entretanto, tinha o grave inconveniente de produzir efeitos colaterais, atingindo o sistema extrapiramidal, causando distonias, acatsia, síndrome parksoniana (rigidez muscular, tremores...), que teriam de ser combatidos com medicamentos anti-parksonianos. Um curioso jogo químico... Eis aí um comportamento bastante estranho. Nos tratamentos prolongados surge ainda o mais grave problema: a discinesia(E) e distonias tardias.
Uma das mais recentes drogas ditas antipsicóticas, a clozapine, se tem a vantagem de diminuir a propensão ao parksonianismo, possui a triste compensação de desenvolver, em alta percentagem, a agranulocitose, doença caracterizada por leucopenia, ulceração da garganta, das mucosas digestivas e da pele.
E como se sentem os doente submetidos a essas drogas? Queixam-se de entorpecimento das funções psíquicas, dificuldade de tomar decisões, sonolência permanente. Verificamos nos doentes submetidos a neurolépticos, nos diferentes setores de atividade da Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilização (STOR), redução ou perda total da capacidade criativa, como se pode verificar em documentos existentes nos nossos arquivos.
Essas descobertas químicas de ação sobre o sistema nervoso ocasionaram importantes transformações no tratamento das doenças mentais. O problema agora era reduzir ou anular as manifestações delirantes e as expressões motoras que as acompanhavam. Estavam criadas camisas-de-força químicas. Paz nos hospitais psiquiátricos!
Uma interna resumiu a situação num poema:

Os médicos dão muito remédio
e as enfermeiras para não terem trabalho
só ficam gritando
vou dar choque
vou dar amarra
ser louco é uma barra
Beta

Outro depoimento:
“Nos sanatórios onde estive não podia contar às pessoas as minhas visões e as vezes que ouvia, porque revelar essas coisas significava ficar mais tempo internado e levar mais eletrochoque. Isso porque minha doença era tratada como sintoma e não como uma revelação de significados” (Milton).
O entusiasmo pela redução do tempo de internação, graças ao controle dos sintomas sufocados pelo neurolépticos, revela-se ilusório se detidamente estudado. Tanto assim que não foi obtida nenhuma mudança quanto ao número de reinternações após sua utilização, de acordo com nossas estatísticas. O tratamento por meio de substâncias químicas “controla os sintomas, mas não os cura. E está ficando cada vez mais evidente que esse tipo de tratamento é contraterapêutico (...) Os sintomas de um distúrbio mental refletem a tentativa do organismo de curar-se a tingir um novo nível de integração. A prática psiquiátrica corrente interfere nesse processo de cura espontânea ao suprimir os sintomas. A verdadeira terapia consistiria em facilitar a cura, fornecendo ao indivíduo uma atmosfera de apoio emocional”[5].


Notas minhas:

A – Hoje, no Brasil, ao menos na área publica que adotou, ou tende a adotar a reforma psiquiatrica e suas diretrizes, o choque elétrico é considerado completamente descartável e funesto. Ele é proibido na rede publica e é considerado último dos últimos dos recursos.
B – A leucotomia era um nome mais justo usado para própria lobotomia, no qual se cortam as vias que ligam o lobo frontal ao tálamo. No tálamo “ficam” regiões consideradas muito importantes como o hipotálamo e o sistema límbico, sistemas responsáveis por, por exemplo, emoções (prazer, raiva..), memória, impulso de beber, comer, etc. “Cerca de 50.000 doentes foram tratados só nos Estados Unidos. Com a ajuda destes abusos, a leucotomia foi abandonada quando surgiram os primeiros fármacos anti-psicóticos”. (para ver mais Wikipédia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Leucotomia).
C – No entanto, esse procedimento ainda é utilizado, ou ao menos cogitado, no Brasil atual, não nas “antigas colônias de alienados” como Juliano Moreira (que hoje vive o processo da Reforma Psiquiátrica), ou nas novas experiências dos CAPS, mas em Hospitais Psiquiátricos Forenses ou Judiciais.
D – “Denomina-se formação reticular a uma agregação mais ou menos difusa de neurônios de tamanhos e tipos diferentes, separados por uma rede de fibras nervosas que ocupa a parte central do tronco encefálico” (Ângelo Machado, Neuroanatoma Funcional: 195). Seus principais núcleos são: núcleos da rafe, lócus ceruleus, substância cinzenta periaquedutal e área tagmentar ventral. Um dos conceitos mais importantes surgidos na pesquisa neurobiológica deste século é que o córtex cerebral, apesar de sua elevada posição na hierarquia do sistema nervoso, é incapaz de funcionar por si próprio de maneira consciente. Para isto depende de impulsos ativadores que recebe da formação reticular do tronco encefálico. Esse fato trouxe novos subsídios para a compreensão dos distúrbios da consciência permitindo entender o que os antigos neurologistas já haviam constatado: os processos patológicos, mesmo localizados, que comprimem o mesencéfalo ou a transição deste com o diencéfalo quase sempre levam a uma perda total da consciência, isto é, ao coma. Sabe-se hoje que isso se deve à lesão da formação reticular com interrupção do sistema ativador reticular ascendente” (op. cit: 200). (Para mais informações ver Neuroanatomia funcional: http://www.ciadoslivros.com.br/descricao.asp?cod_livro=MA3377&origem=buscape&origem=buscape).
E – “A Discinesia é uma alteração dos movimentos voluntários, incluindo certos tipos de movimentos involuntários anômalos produzidos especialmente pelo consumo de alguns fármacos. As Discinesias podem ser coreiformes (não repetitivas, rápidas, espasmódicas e quase intencionais), atetóides (contínuas, lentas, sinuosas, anárquicas) ou movimentos rítmicos em determinadas regiões corporais que diminuem com os movimentos voluntários da parte afetada e aumentam com os movimentos voluntários da zona intacta. As Discinesias são conhecidas mais como efeitos secundários dos neurolépticos. Nesse caso se chamarão Discinesias Tardias, aparecendo após o uso crônico de antipsicóticos (geralmente após 2 anos). Clinicamente a Discinesia Tardia é caracterizada por movimentos involuntários, principalmente da musculatura oro-língua-facial, ocorrendo protrusão da língua com movimentos de varredura látero-lateral, acompanhados de movimentos sincrônicos da mandíbula. O tronco, os ombros e os membros também podem apresentar movimentos discinéticos. (Retirado do site http://72.14.209.104/search?q=cache:LaHZheMpxW0J:www.psiqweb.med.br/gloss/dicd1.htm+discinesia&hl=pt-BR&ct=clnk&cd=1&gl=br .. para mais ler o mesmo site em Discinesia).


Notas do livro:


[1] - Capra, F. O ponto de Mutação, p. 123. Cultrix, São Paulo, 1988.
[2] - Artaud, A. Ouvres Completes XI, p. 13. Gallimard, Paris, 1974.
[3] - Freeman, W. American Handbook of Psychiatry II, p. 1526.
[4] - Idem, ibidem, p. 1526.
[5] - Capra, F., op cit., p. 136

quarta-feira, março 07, 2007

O Nascimento

O mundo imundo inunda o mundo,
De todo mudo mundo,
E deixa-o calado,
Em sua vontade de não ser.

O mundo estraga o mundo,
O mundo cura o mundo,
O mundo muda o mudo mundo e volta a dizer,
E ao dizer, deixa de ser.

Todo mundo é muito mundo,
Muito mais do que se pensa ser
Cada rosa que é muito rosa,
Acaba por ser espinhosa:
Rosa é pétalas diversas,
Vermelha, branca, cores varias.

Mais, coisa estranha, quer ser violeta,
Não, não, não, sempre esbraveja, veja só, o azul
Filho da puta! Vermelho e irritadiço:
Ah, tom matinal, que se passa dentro de cada curral?

Porcos rolam,
A lama esquenta
Mas o coração não foi feito pra esquentar assim.
O camelo prova a carga ao sol,
Em seu ultimo minuto de escravis(D)ão
- e o sol tambem não esquenta -

O leão urge, em sua ilusória potencia,
potencia falica.
A criança sorri, e os céus se abrem,
E o mundo amor, ri em todo seu esplendor,

Por entre guerras e desastres.

terça-feira, fevereiro 27, 2007

Fernando Pessoa - Em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Freaks

"Em um nível pessoal, Freaking Out é um processo pelo qual um indivíduo se livra de padrões obsoletos e restritivos de pensamento, moda e etiqueta social de modo a expressar criativamente seu relacionamento com o ambiente próximo e a estrutura social como um todo. (...) Em um nível coletivo, quando qualquer número de 'Freaks' se reunir e se expressar criativamente por intermédio de música ou dança, (...) chama-se a isso de freak out. Os participantes, já emancipados de nossa escravidão social nacional, vestidos com seu traje mais inspirado, realizam, como grupo, qualquer potencial que tenham para livre expressão. Nós gotariamos de encorajar qualquer um que ouça essa musica a se juntar a nós (...) Tornar-se membro das Mutações Unidas (...) Freak Out!"

Frank Zappa, 1966.

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Brincadeiras da vida

A vida é um tanto engraçada. As vezes simplesmente acho que Ela gosta de brincar conosco, brincadeiras de criança, mas com uma certa ironia. É o famoso: "Ironias do destinos". Pois, como quem lê aqui sabe, isso é fato razoavelmente frequente comigo - ou porque vejo coencidencias significativas demais - ou porque é assim mesmo.

Pois neste caso não é exatamente uma coencidencia, mas sim uma piada. Eu estou fazendo estagio, como já coloquei aqui, na "Colonia" (hoje chamado Instituto) Juliano Moreira, lugar onde já houveram mais de 3000 internações psíquiatricas num mesmo período, com a reforma psíquiatrica e a política de desinstitucionalização o número caiu consideravelmente, em parte, pelas pessoas idosas que foram morrendo, e por outro lado, pelo acolhimento das familias e pela saida de pacientes mais organizados, que conseguiram trabalho, lar, etc.. enfim, ai tem muitas causas.. Hoje, a Colonia conta por volta de 650 internos, ou usuários, como tem-se frequentemente chamado. Eu, pessoalmente, não gosto muito do termo.

Acabou que na escolha do núcleo (escolha porque passei por concurso, ai é tudo escolhido por ordem de pontuação) eu escolhi o núcleo Rodrigues Caldas dentro da Juliano Moreira. Mas não vou adentrar muitos pontos aqui, quero voltar para a piada. Tive que vir antes até aqui, pois apos escolher o núcleo Rodrigues Caldas fui pesquisar na internet quem foi esse sujeito, afinal, ele da nome ao núcleo que estou. Então encontro bonitas informações:

Ele foi um dos diretores da Colônia Juliano Moreira, que em 1920, no seu discurso inaugural como diretor disse, em "belas" palavras, estar pronto para lidar com "os delicados problemas atuais de higiene e defesa social pertinentes aos deveres do Estado para com os tarados e desvalidados de fortuna, do espírito ou do caráter, para com os ébrios, loucos e menores retardados, ou deliquentes abandonados, assim como para com os indesejáveis inimigos da ordem e do bem público, alucinados pelo delírio vermelho e fanático das sanguinárias e perigosíssimas doutrinas anarquistas ou comunistas".

É ou não uma brincadeira do destino que eu esteja estagiando lá?

terça-feira, fevereiro 06, 2007

A mudança de paradigma na psicologia analítica:
“Jung e a complexidade: totalidade e multiplicidade”.

Elizabeth Cotta Mello
Mestre em Psicologia/Professora das FAMATh
(Obs minha: esse é um artigo de minha ex-professora de epistemologia que digitei no cpu)

Esse artigo se propõe apontar a concepção epistemológica da psicologia analítica dentro da proposta do novo paradigma para a psicologia clinica. Pretende-se ampliar trabalhar como de Sigelmann et alii (1989) sobre epistemologia, enfocando a psicologia analítica. Devido a abrangência, não se pretende esgotar o tema. Começaremos com um breve histórico da psicologia de C.G. Jung e a seguir discutiremos sua postura epistemologia dando continuidade a autores como Franz (1980), Silveira (1981).

C.G. Jung iniciou sua atividade psiquiátrica em 1900. Em 1905 trabalhou com o famoso psiquiatra Bleuler. Como comenta Nise da Silveira (1981), o interesse de ambos consistia em trazer esclarecimentos concernentes à estrutura psicológica dos fenômenos mentais ligados a psiquiatria descritiva. Recorreram a experimentos com associações verbais. As pesquisas realizadas apontaram para a existência de complexos afetivos não conscientes capazes de produzir manifestações involuntárias. Estabelecia-se, assim, um caminho experimental como via de acesso ao inconsciente. Freud tinha desenvolvido seu trabalho sobre sonhos onde chegava as mesmas conclusões. No ano de 1907 até 1912 surgiu uma estreita colaboração entre Freud e Jung. O rompimento com Freud veio em “função das diferenças existentes entre eles que se tornaram explícitas no livro ‘Metamofoses e símbolos da libido’ de 1912” (Silveira, Op.Cit). Jung retomava a definição etimológica de libido como energia psíquica em geral. Já se pronunciava também a cosmovisão de Jung no que tange a noção de totalidade e autonomia inconsciente.

Mediante estudos interdisciplinares das ciências e das tradições, em especial com a física, Jung percebeu que as ciências em geral, e não somente as humanidades, exigiam a formulação de uma linguagem contextualizada e de uma comunicação entre saberes (ciências, artes, tradições), unindo subjetividade e objetividade na relação cognoscente. Desde a década de 50 Jung e W. Pauli (prêmio Nobel de física de 1945), e outros estudiosos, trabalharam juntos nessa busca (Cf. Jung, 1984; Franz, in: Jung s/d; Jung & Pauli, 1952 apud Jaffé, 1990).

Cabe pontuar alguns pressupostos por onde a ciência se pautava para iniciarmos a discussão posterior sobre a postura epistemológica da psicologia analítica e o novo paradigma. Existiam, na ciência clássica, alguns pressupostos: 1. O princípio de universalidade: aceitação de verdades absolutas; 2. Princípio da causalidade linear, não existindo liberdade sem inovação; 3. o tempo como uma das dimensões do universo, onde tudo é reversível; 4. o complexo se reduzindo ao simples jogo de elementos (e o rompimento com a totalidade); 5. a preditibilidade total, onde nada poderia escapar ao controle “a autonomia não é concebível” (Morin, 1996: 331); 6. a objetividade total calcada em um realismo (separação absoluta entre o objeto e o sujeito), logo a eliminação da subjetividade; 7. a quantificação e a formalização que relegava o resta à ilusão. (Morin, 1996; Sigelmann, Op. Cit; Mello, Op. Cit).

A união dos princípios: universalidade e singularidade

Evitando enveredar por uma investigação de como se deu o processo de mudança e a crise da ciência, é fato que quanto mais os estudiosos se aprofundavam nas suas especialidades, mais tiveram que se confrontar com situações que lhes retiraram a segurança de leis permanentes. “A descontinuidade entrava pela porta principal – a da experiência científica” (Nicolescu apud Kuperman, 1993: 123): A ciência começava a se admitir local, paradoxal, por vezes.

Na psicologia analítica, apesar da validade de leis gerais, estas são consideradas insuficientes; o inconsciente assume “uma variedade e uma multiplicidade também muito grandes” (Jung, 1984: 114). O essencial é que “o inconsciente se transforma e provoca transformações” (Jung, 1963: 184).

Na clínica a singularidade de cada mensagem (texto-contexto-subtexto) e sua indicação de caminho residem essencialmente na vivência imprevisível da relação terapêutica: eis a arte que segue a teoria e a técnica. Para C.G. Jung o grande fator na psicoterapia é o terapeuta e a “combinação (al)química” que transforma ambos: “O que significa ele para mim” sempre perguntava-se Jung (1963: 123), acrescentando: “Se nada significa, não tenho um ponto de apoio”. As teorias e técnicas são inevitáveis, mas não passam de meios auxiliares da prática: precisamos estar prontos para “abandoná-las”.

2. Causalidade linear versos causalidade complexa e acausalidade

Para a psicologia de Jung a causalidade é fundamentalmente um “pré-conceito” da cultura ocidental, idéia que para Descartes é garantida pela noção de imutabilidade de Deus (Cf. Franz, 1980). A vida é basicamente acausal, mas a causalidade complexa não é descartada. Sobre ela, Morin (1996: 332), fala de uma “causalidade mútua inter-relacionada, com o princípio da endo-exocausalidade para os fenômenos de auto-organização”. Para C.G. Jung o inconsciente está em constante trabalho de revolver conteúdos, agrupá-los e reagrupá-los. Mais que isso, para ele, a libido energia, pode metamofosear-se, nos indivíduos, através da dialética entre consciência e inconsciente (Cf. Silveira, Op. Cit). O pensamento sincronístico¹ (Cf. Franz, 1985), por sua vez, não existe na seqüência de eventos, podendo ser entendido como pensamento cujo centro é o tempo. Se não há garantias de ordenação dos fenômenos, a causalidade perde o seu sentido.

3. Tempo e Espaço e Tempo-Espaço: as duas possibilidades

Por um lado, podemos falar da necessidade de “fazer intervir a história e o acontecimento em todas as descrições e explicações” (Morin, 1996: 332), por outro, intervém além dessa história particularizada dos fenômenos, o rompimento dessas categorias no inconsciente. A própria questão do tempo passa a ser problematizada. Para a nossa consciência “newtoniana” o tempo e o espaço estão separados, existindo linearidade, sendo essa uma vivência apenas do “nosso universo” conhecido. Porém, no inconsciente só existe virtualidade. A noção de espaço e tempo é posterior, é uma categoria da menta consciente. O constructo do inconsciente se enquadra nos pressupostos da física quântica e cosmologia moderna, e na perspectiva matemática atual onde a equação sobre o tempo decifrada por Godel é uma circulo (Cf. Novello, Op. Cit).

4. Totalidade hipercomplexa do real e a Multiplicidade

O cerne da psicologia analítica é tomar o real como totalidade, mesmo sabendo não ser possível abarcá-la (Cf. Nunes, 1989). Representações de totalidade aparecem em todas as expressões culturais (arte, mito, etc.) e são símbolos presentes em “todas as nossas representações inconscientes” (ibid, pág 217), como concluiu Jung (1986: 185): “o que se pode dizer com alguma certeza é que os símbolos apresentam um certo caráter de totalidade e por isso, presumivelmente, significam totalidade; via de regra, trata-se de símbolo de unificação, isto é, da conjunção de opostos”. Jung também chama a atenção para o significado da palavra “totalidade ou total” que é “tornar sagrado ou curar” (Jung, 1987: 159). A psicologia analítica propõe, então, respeitar a idéia que curar possui o sentido de convivência com o conflito e busca do todo harmônico. O objetivo da terapia seria, então, permitir a comunicação do sujeito com o seu sentido único de totalidade.

A maioria das doenças ou dificuldades humanas, sejam elas psíquicas e/ou físicas significam, dentro dessa visão, dissociações; a um só tempo, perda da harmonia e tentativa de reequilíbrio. A doença não é uma situação externa, isolada, é um caminho que permite a complexidade da conformação total. As narrativas mitológicas de heróis e heroínas, por exemplo, são modelos de receptividade para reações emocionais que solidificam o consciente, acolhendo os impulsos do inconsciente (Franz, 1996), logo, histórias de luta contra o adoecer. Os heróis cotidianos são aqueles que aceitam os desafios (possíveis) que se apresentam (Jung, 1981b), garantindo que a abundância do inconsciente não seja vertido em um vaso estreito demais (Franz, Op. Cit.).

5. Previsibilidade versus imprevisibilidade: a ilusão do controle absoluto

C.G. Jung foi contrário a idéia de fundar uma escola hegemônica em psicologia (1981a; Cf. Franz, 1980). Defendia a complexidade do psiquismo e a multiplicidade de facetas destes, logo, a convivência na co-disciplinaridade psicológica (divergente) e a parcial integração-comunicação dos conhecimentos (Jung, 1981a).

6. O retorno da totalidade múltipla: a união da subjetividade e a objetividade

Na prática, afirmava: “Cada vida é um desencadeamento psíquico que não se pode dominar, a não ser parcialmente. É muito difícil, por conseguinte, estabelecer um julgamento definitivo sobre si mesmo ou sobre a própria vida” (Jung, 1963: 53). Na atualidade os estudiosos trouxeram legitimidade para os questionamentos de Jung (1984; Cf. Amaral, 1995: 11; Morin, Op. Cit; Nicolescu, 1995; etc).

Discutir sobre objetividade e subjetividade é se dirigir às próprias condições de verdade, de conhecimento e inteligibilidade. Mais ainda, é falar do ser humano. Como Lyotard (1994) e Pedro (1996) concluímos: é a partir da invenção da ciência que se passa a falar em cultura como separada da natureza e do humano como separado do inumano, acontecimento inaugurado na modernidade (ibid).

A interação é uma proposta de ajustes e reajustes permanentes nesses sistemas vivos (Jung, s/d, 1981a; Morin 1996). Surge a noção complexa e paradoxal de sistema: onde o todo do sistema é maior que a soma das partes, de uma combinação viva e criativa e onde as partes, em suas multiplicidades inesgotáveis e dinâmicas, não se reduzem ao todo. Unidade e singularidade se interpenetram e se unem de forma imprescindível como a própria vida que pode ser esse todo e cada um de nós possamos ser manifestação única dessa amplitude. Na clínica: “O fato decisivo é que enquanto ser humano encontro-me diante de outro ser humano. A análise é um diálogo que tem necessidade de dois interlocutores” Jung (1963: 121).

O aspecto nefasto da subjetividade é a inconsciência, não em si mesma, mas a sua permanência. Nesse sentido, é lente que distorce e amplia o real, não é uma ilusão qualquer, mas outra realidade, como na paixão, é expressão de nossa totalidade desconhecida. Como observa Fernando Pessoa, com a síntese que a arte permite: “Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte”. As fantasias (projeções) podem ser utilizadas para narrar sobre nossas possibilidades de criatividade, logo é preparação para todas as relações inter e intrapsíquicas.

Jung, como coloca Siegelmann, “(...) conseguiu integrar (...) polaridades com o inconsciente coletivo” (1989, 28). O encontro entre subjetividade e objetividade transcende a psicologia, é uma tarefa de todo o processo de conhecimento. Como resume Heinsemberg (Apud Arent, 1958: 26), o homem ao examinar a natureza e o universo, em lugar de procurar e achar qualidades objetivas, encontra sua subjetividade (Cf. Franz in: Jung s/d; Jung, 1984).

7. A associação de noções complementares e antagônicas:

C.G. Jung e W. Pauli, a partir de contribuições mutuas, concluíram que o “(...) único ponto de vista aceitável parece ser o que reconhece, como mutuamente compatíveis, ambos os lados da mesma realidade – o quantitativo e o qualitativo, o físico e o psíquico – podendo abarcá-los simultaneamente” (Pauli & Jung apud Jaffé, 1990: 37). Jung recusa toda a quantificação como resposta última e única: “Jung considerava as afirmações estatísticas em psicologia e sociologia como (...) abstração mental” (Franz, 1992: 205).

Considerações Finais: Por um princípio de Complexidade

A psicologia de C. G. Jung é denominada psicologia complexa na Alemanha mas analítica no resto do mundo. É fundamental observar que o nome surgiu por pretender se ocupar dos fenômenos psíquicos em sua complexidade. Jung admite que cada indivíduo possua uma totalidade única que se expressará na medida em que viabilizar expressões de sua individualidade. Por outro lado, a psicologia analítica assume que o homem, no seu trabalho artesanal de auto construção, utiliza elementos exteriores e interiores, que também são compartilhados pela humanidade, ou seja, cada ser é parte de um sistema completo, onde todas as partes, por estarem interligadas, possuem uma totalidade anterior. O sujeito é entrecruzado por várias linguagens: a individual (sua história) e a coletiva que o coloca e o envolve em múltiplas interfaces interconectadas, a partir dos inúmeros pertencimentos do mesmo ao seu grupos e subgrupos. Por outro lado, o homem é animalidade e possui em comum com sua espécie determinadas características. E uma delas é, inegavelmente, sua possibilidade de romper com o ecossistema, de se distanciar de suas necessidades vitais, dissociando-se de sua totalidade. Cada sujeito (microcosmo) é ao mesmo tempo singularidade e parte da unidade. Somos constituídos por uma multiplicidade geral de combinação infinita, inesgotável, insubstituível como expressão subjetiva e objetiva de uma face do todo, não reduzível a unidade.

“Esta apreensão da totalidade constitui também a meta da Ciência (insiste) (...) em colocar questões bem definidas, que excluem, o quanto possível, tudo o que perturba (...) Com este fim, cria-se em laboratório uma situação artificialmente limitada à questão, que obriga a natureza a dar uma resposta inequívoca. (...) Mas se queremos conhecer em que consiste esta ação, precisamos de um método de investigação que imponha o mínimo de condições possíveis, ou, se possível, nenhuma condição, e assim deixa a natureza responder com sua plenitude” (Jung, 1986: 28).

Como comenta Morin (1980) sobre a curiosa situação das ciências humanas: em função do método limpamos o campo e banimos o sujeito das humanidades para que as ciências do homem pudessem ser científicas.

Para nos aproximarmos dos fenômenos é necessário a convivência de diferenças, de antagonismos. Para unir-mos, sem perder indentidades, precisamos admitir diferenciações, logo, unir sem “confundir”. Aceitar a ilusão da previsibilidade que surge a cada nova revolução epistemológica é ceder a uma cultura que insiste em capturar o novo e o múltiplo em esquemas definitivos.

A modernidade tem trabalhado mais com a separação (“logos”), que olha a totalidade e a desmembra, roubando-lhe a sua multiplicidade e o sentido de coesão e interconexão (“erros”). Aproximar saberes é desmontar essa edificação cultural e arquetípica de verdades unívocas. As especializações (ainda que necessárias) cumprem a finalidade de separar o conhecimento do homem sobre o mundo, logo a consciência da complexidade. Além disso, facilitam a prática acrítica. Só quando confrontarmos teorias e práxis é que podemos perceber as conseqüências éticas das tecnologias. Devemos estar sintonizados com a contemporaneidade para não vermos os destroços de nossa inconsciência individual e social. Quem pode se esquecer do desespero do física Oppenheirner que um dia acreditou que havia descoberto o segredo do átomo, mas só depois de Hiroshima e Nagasaki pode se aproximar da totalidade do mesmo. O conhecimento sem consciência é muito mais destrutivo do que a ausência de conhecimento (Cf. Byington, 1998). É responsabilidade da psicologia refletir sobre o sujeito do conhecimento e seu academicismo povoado de tecnologias destrutivas.

Referências Bibliográficas:

Amaral, M. T. (1995). O homem sem fundamentos – sobre a linguagem, sujeito e tempo. RJ. Ed. UFRJ – Ed. Tempo Brasileiro.
Arest, A. (1958). The Humam Condition, Chicago: Chicago Univ. Press.
Byington, C. A. (1988). Estrutura da Personalidade, Persona e Sombra, SP: Ed. Ática.
Bohm, D. (1980). Wholeness and the implicate order. London: England Ark.
Franz, M. L. (1985). Alquimia, SP: Cultrix
-------------- (1966). O Feminino nos Contos de Fada. Petrópolis: Vozes
-------------- (1992). C.G. Jung seu mito em nossa época. SP: Cultrix.
Jaffé, A. (1990). Ensaios sobre a psicologia de C. G. Jung, SP: Ed. Cultrix.
Jung, C. G. (1984). A Dinâmica do Inconsciente, Petrópolis, Vozes
------------- (1981a). A Prática da Psicoterapia, Petrópolis, Vozes
------------- (1986). AION – Estudos sobre o simbolismo de si-mesmo, Petrópolis, Vozes
------------- (1981b). Desenvolvimento da Personalidade, Petrópolis, Vozes
------------- (1963). Memórias, Sonhos e Reflexões. RJ, Nova Fronteira.
------------- (s/d). O Homem e seus Símbolos, RJ, Nova Fronteira.
------------- (1985). Mysterium Coniunctions, Petrópolis: Vozes
Kuperman, P. (1993). Ciência e Tradição: horizontes de desarmonia in: Pub da Pós-Grad. ECO/UFRJ. RJ
Lyiotard, J. (1986). O Pós-moderno, RJ: José Olympio.
Mello, E. C. C. (1995). Contribuições epistemológicas para a comunicação interdisciplinar: as teorias cosmológicas, as cosmogonias e sistema totalizante de C.G. Jung, Projeto de Doutorado, RJ: ECO-UFRJ.
Morin, E. (1996). Ciência com Consciência, RJ: Bertrand Brasil.
----------- (1980). Le Méthode, Paris, Seuil, V.II.
Novello, M. (1988). Cosmos e contexto, RJ, Florese Universitária.
Nicolescu, B. (1995). Ciência, Sentido & Evolução à Cosmologia de Jacob Bocherne, SP, Ed. Athar. Nunes, A.M.S (1989). Possíveis implicações epistemologias do conceito de interação não-ordinária para noção de sincronicidade de Jung, Dissertação de Mestrado, RJ, FGV/ISOP.
Pedro, R. M. I. (org) Cognição de híbrido. In: Amaral, M. T.,Contemporaneidade e novas tecnologias, RJ, Sette Letras.
Sá Junior, N. N. (1991). Holodontia, princípios e fundamento da odontologia sistêmica, RJ, Enelivros Editora.
Sigelmann, E. alii (1989), Sistema Internacional como objeto de estudo da Psicoterapia: Hegemonia Epistemológica. Cadernos do ISOP, FGV. III.
Silveira, N. (1981) Jung, vida e obra, RJ, Ed. Paz e Terra.

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Tao te king II

"Quando perdem sua noção de respeito,
As pessoas se voltam para a religião.
Quando elas já não acreditam em si mesmas,
Elas começam a depender da autoridade".

Lao-Tsé, Tao Te King

"Quando ricos especuladores prosperam
Enquanto fazendeiros perdem sua terra;
Quando funcionários do governo gastam dinheiro
Em armas em vez de curas;
Quando a classe superior é extravagante e irresponsável
Enquanto os pobres não têm para onde ir -
Tudo é roubo e caos.
Não está de acordo com o tao.

Lao-Tsé, Tao Te King

sexta-feira, janeiro 19, 2007

Duvidas (e a falta delas) Cartesianas

Penso, logo existo.
Ao pensar descarto qualquer duvida de uma possível loucura,
Não cogito sobre ela, logo não sou louco.
O louco não cogita sobre sua loucura,
Logo, ele não é louco,
Alem do que, o louco não pensa,
Logo, ele não existe,
E é tão louco (inexistindo) que é o menos loucos dos seres,
Pois é o único que ainda não cogitou realmente sobre sua loucura.

quarta-feira, janeiro 17, 2007

A Jornada.


A terra batida é o chão, marrom escuro, semi-úmido. O vento frio sopra o desatino: tristes flores não mais cantarão. Um medo toma conta do sujeito, assujeitado por sua falta de tino. Nem sempre foi assim, dirá um velho sábio. Nem sempre. Tudo começou quando Satan chegou, trouxe toda sorte de sortilégios. Efêmero, diria mais, aterrador. O prazer se esvai com facilidade nesta terra que causa um certo arrepio. Satan traz o medo, a descrença, a separação.

Medo de não agüentar, a juventude sempre pareceu mais bela: contestadora, imprevisível, destemida, efêmera e andando em cordas bambas. Adaptar, palavra desprivilegiada naquela geração. Tudo já foi mais fácil. Separação: infância, adolescência, adultescencia, adultice e velhice. Morte. Medo. Marcas. Trabalho. Trindade.

Tempo: senhor maligno que come seus filhos impiedosamente. Essa é a história, estamos prontos. Não estamos prontos. É Satan que traz o medo, o medo de viver, de morrer, de crer, de se ajuntar. Separa como a morte, Thanatos, busca seus filhos de pouca sorte. Maldição. A maldição. Amaldiçoados. Em tristes reinados não há o que cogitar, a única aventura possível é partir pra cima gemer e amar.

E não é o amor, este fogo que emana, que a tudo faz mover? Sobre a insígnia do amor o herói enfrenta o mundo, se for preciso. É um gesto nobre, por conseguinte, preciso. Não que não seja dotado de erros, ao contrário, é o cumulo do erro. É o erro que foge ao prazer supremo da morte. Mas ao fugir do prazer da morte se desespera. Desespera por ter que viver desesperado, desespera por ter que Sofrer. Desespera por querer ser outra pessoa, desespera por querer ser quem ele realmente é.

Tormento agudo. Eis a insígnia do herói. Sai de sua terra sem conhecer esse novo mundo. Apenas teme, e ao temer, ao invocar Satan, transforma a floresta em pântano. Comete o erro de perguntar ao pássaro como andar. Um lobo nunca perguntaria a um hipopótamo como caçar. Ele simplesmente sabe, não há como duvidar. A procura é concreta e dolorosa. Seja como for, existe um bebe a sua espera, Sophia é seu nome. Só assim poderá alcançar o centro. Um pedaço de um tesouro perdido há milênios atrás. Conscientemente perdido. Tzimtzum.

quinta-feira, janeiro 04, 2007

Lógica de uma Violência e a Violência de uma Lógica


Estamos a espreita. Procurando a paz onde pudermos encontrá-la, entre traficantes, policiais ou milícias fora-da-lei. O muro pintado da cidade revela o desejo: Paz. Sem mais, nem menos: Paz. Onde o desejo de paz encontra o “de pais” é difícil demarcar, se entrelaçam, se entrecruzam. Procuramos uma proteção e assim estamos a espreita da Paz. Qual Paz queremos? No olhar da velha senhora as palavras não deixam duvida: “Se botassem dez bandidos no paredão acabava com isso!”. Paz sem Paz, ou melhor, a hipótese é transparente como o rio antes da poluição da industria: “o massacre leva a Paz”.

Fazemos então uma distinção em forma da lei: “Há os que são bons e há os que são maus”. É bem simples: Se existe “A x B” e A vencer B só restará A, desta forma a guerra leva a paz. Dessa forma o Estado venceria o Crime-Estado. Mas os nossos obstinados defensores da Paz não perceberam ainda uma falta grave em sua lógica. Existem também policiais bandidos e bandidos policiais. Então entre os sistemas estabelecemos outros pontos: existe também AB e BA. E o pior! (incompreensivelmente pior) Existem A que viram B, B que viram A, A que viram AB, etc... Etc.

Apelemos então para o ponto de vista, para a estranha hipótese de que não existe um único modo de ver o mundo. Para uns os bandidos são bons e para outros eles são maus, para uns a policia é boa e para outros ela é má. Será que se trata então de uma questão ideológica? Se existissem ideologias que se digladiassem desde sempre seria fácil responder essa pergunta: Sim, seria a resposta, mas encontramos barreiras nítidas nesse pensamento. É bem simples: os bandidos eram pobres, os bandidos desejam ficar ricos, os bandidos não tinham poder, os bandidos desejam o poder, por conseguinte: os bandidos desejam ser o Estado, a ordem e a lei. Os bandidos hoje são, entre tantas coisas, uma copia tosca do Estado e do puro desejo capitalista: capitalista selvagem.

Onde ficamos entra tamanha confusão? Seria muito fácil dizer: Ambos não prestam, pois desejam dominar, excluir, massacrar, incriminar, marginalizar. No entanto, também seria muito cômodo tomar parte de um dos lados e se calar, ficar parado, omisso a toda sorte de assassinatos, de estupros, de torturas. É uma questão de intenção. Aonde desejamos chegar.

Queremos Paz e, como diz uma bela mulher hippie: “Querer paz através da guerra é como querer a virgindade através do sexo”. Queremos Paz, mas com nosso imediatismo infantil só teremos guerra. A policia mineira entra na história como um novo comando. Um novo Estado marginal, um tanto anal, claro, não quer dar o “presentinho” (a favela) da Grande Mamãe “Policia”, mas, como resolve a diarréia escatológica (o tráfico), a policia a permite ficar lá, na santa paz dos assassinatos. Assassinam travestis, usuários de drogas e traficantes. Colocam sua moral conservadora em primeiro plano: “Ou é como queremos que seja, ou não é” e em meio a esta moral compulsiva assassinam a diversidade, o diferente, o outro.

Não queremos dizer que os traficantes sejam bonzinhos: e, acreditem, não o dissemos. Não queremos trafico, não queremos ditaduras, que se faça ouvir: queremos Paz. No entanto, queremos ressaltar que o trafico só existe porque existe um mercado ilegal, informal, isto é, um recalque, uma proibição, uma castração sintomática e desnecessária promovida pela nossa tão famigerada organização política (no pior dos sentidos). E ficamos jogados nesse novo mundo, nessa Nau dos Loucos do século XXI, entre as águas agitadas de um mar tortuoso, jogados, como diz Laing “num mundo louco” e ainda desejam fervorosamente que nos adaptemos, que respeitemos as leis dessa sociedade... Respeitar o que? Um tipo de pensamento que promove sua própria desgraça? Um tipo de sociedade que promove a exclusão e a barbárie? Há quem respeite, mas me desculpem meus digníssimos senhores, não eu. Não posso me calar quando vejo o transporte aumentar ainda mais, enquanto a população passa necessidade, não posso me calar ao ver os deputados quererem um aumento de 91% enquanto o salário mínimo decai (e o Globo diz que ele aumenta). Não digníssimos senhores, tenho que deixar meu sincero “Vão se fuder!” para nossos amigos do alto escalão financeiro e um grande desejo de má sorte para essa política esdrúxula.

Assim foi falado, assim foi dito.