domingo, outubro 21, 2007

DETENÇÕES E TRATAMENTOS AGRESSIVOS NA HISTÓRIA DA LOUCURA

Esse texto é parte de minha monografia de conclusão de Estágio no Juliano Moreira. O texto é copyleft, citem a vontade, mas utilizando as fontes... Boa leitura.

Na história da loucura podemos ver uma série de absurdos que foram realizados com pessoas que muitas vezes nem sequer tinham direito a defesa. A importância de revisarmos essa história para embasarmos nosso trabalho parece vir da necessidade de sempre darmos um passo atrás antes de projetar nossas sombras[1] numa população propicia para essa projeção, quer dizer, uma população que mesmo nos tempos atuais de reforma psiquiátrica ainda continua a margem, sendo mesmo insultada e ridicularizada em diversos locais pela população dita sã. James Hillman, psicólogo pós-junguiano, nos coloca uma consideração fundamental:
O primeiro é a máxima hipocrática: primum nihil nocere. Antes de mais nada, acima de tudo, primeiro, não faça mal, não prejudique nada. Antes de qualquer ação, ou plano de ação, antes de mais nada, considere o lado ruim antes do bom. Considere os riscos ao invés dos benefícios. Os gastos de pesquisa devem abordar os piores cenários possíveis e entender na íntegra a noção de “fazer mal” (Hillman apud Bernard, 1995i).

Na época cristã e medieval onde a compreensão sobre a loucura continha normalmente relação com a demonologia, encontramos no próprio malleus malificarum, obra visceral de caça as bruxas dos inquisidores Kramer e Sprenger, alguns pontos da terapêutica da loucura. Encontramos desde terapêuticas mais amenas até atos de violência imoderada, mas é importante considerar que: “para esses autores, o demônio aloja-se na cabeça de sua vítima e ali exerce controle, provocando a loucura e comportamentos de possessão e obsessão” (Tommasi, 2005, p.61).

Dentre as terapêuticas de Kramer e Sprender podemos lembrar que: “Um homem possuído por um demônio pode ser aliviado pelo poder da música, como foi Saul, pela harpa de David ou pelo poder de uma erva, ou pelo de qualquer outra substância material em que exista alguma virtude natural” (Kramer et Sprender apud Tommasi, p.61), mas ao mesmo tempo se após diversas orações, sessões, jejuns, privações se “o demônio não se retira, o endemoniado deve ser queimado vivo. Acreditava-se que dessa maneira o demônio também seria queimado” (Tommasi, p.62). Nessa época “a medida terapêutica usual era a fogueira” (op. cit). É possível acreditar, como Szasz, que neste momento: “as racionalizações teológicas e explicações mágicas serviram como fundamentos para a queima na fogueira, de milhares de doentes mentais” (Szasz et al apud Tommasi, p.63). Ou, ao menos, o que a época moderna chamou de doença mental.
Podemos ainda considerar que:

(...) na maior parte das cidades da Europa existiu, ao longo de toda a Idade Média e da Renascença, um lugar de detenção reservado aos insanos: é o caso do Châtelet de Melun ou da famosa Torre dos Loucos de Caen; são as inúmeras Narrturmer da Alemanha, tal como as portas de Lubeck ou o Jungpfer de Hamburgo” (Foucault, 2001, p.10).

A experiência padrão, no entanto, na Renascença foi a “Nau do Loucos” onde estes eram enviados a terras distantes e fizeram parte de todo imaginário renascentista, inclusive na própria pintura. A saída para o mar, para uma terra distante, estava toda carregada de simbolismo, muito além da mera utilidade social e limpeza da desrazão. Ainda nesta época, segundo Foucault (2001, p.11): “Acontecia de alguns loucos serem chicoteados publicamente, e que no decorrer de uma espécie de jogo eles fossem a seguir perseguidos numa corrida simulada e escorraçados da cidade a bastonadas. Outro dos signos de que a partida dos loucos se inscrevia entre os exílios rituais”.

A loucura na era clássica sai da imensidão do mar, da paradoxal relação prisão-liberdade na nau dos loucos e encontra seu lugar nos grandes hospitais, “O classicismo inventou o internamento, um pouco como a Idade Média a segregação dos leprosos; o vazio deixado por estes foi ocupado por novas personagens no mundo europeu: são os ‘internos’ ” (op. cit, p.53). Esse grande internamento não se dava pelo saber médico, saber este que só pronunciaria a “verdade” da loucura no final do século XVIII e inicio do século XIX com Pinel e Tuke. Na verdade essas casas de internação tinham intenções político-religiosas de repressão, “O internamento, esse fato maciço cujos indícios são encontrados em toda Europa do século XVII, é assunto de ‘polícia’” (op. cit, p.63). Quer dizer “O internamento seria assim a eliminação espontânea dos ‘a-sociais’” (op. cit, 79).

É importante considerar que no contexto do desatino, o louco era muito alem do que conhecemos pelas psicoses, mas eram considerados loucos muitas vezes os libertinos, os que viviam uma sexualidade considerada profana (ex: homossexuais), desempregados, bêbados, alquimistas, praticantes de magia, profanação, etc. Ainda na era clássica os loucos eram mostrados em grades para o público que os visitava como se eles fossem monstros, animais, apontando o dedo e refletindo sobre o que não se deve ser. Os guardiões de Bicêtre, por exemplo, eram conhecidos por fazerem os ditos loucos dançarem e fazerem acrobacias por meio de chibatadas (Tommasi, 2005).

O próprio corpo humano foi utilizado como medicamento, onde o corpo humano também é considerado, até pleno século XVIII, como um dos remédios privilegiados da loucura. Dentre esses remédios, diz Foucault (2001, p.303): “Os cabelos dos homens são bons para eliminar os vapores, se queimados e dados para que o doente aspire a fumaça... A urina do homem recém-expelida... é boa para os vapores histéricos”. O mais estranho para a mentalidade atual, no entanto, pode ser considerado os remédios das convulsões:

Mas são as convulsões, desde o espasmo histérico até a epilepsia, que atraem com a maior obstinação os remédios humanos – especialmente os que podem ser extraídos do crânio, parte mais preciosa do homem. Existe na convulsão uma violência que só pode ser combatida através da violência, e essa é a razão pela qual durante tanto tempo se utilizaram os crânios dos enforcados, mortos por mãos humanas e cujos cadáveres não tivessem sido sepultados em terra santa. (...) É também contra as convulsões que se utiliza sangue humano ainda quente, desde que não se abusasse dessa terapêutica cujo excesso podia levar à mania (op. cit).

As condições dos loucos na época clássica eram tão horríveis como as do inicio da era moderna, até o famoso gesto de Pinel e Tuke libertando os loucos das grades e amarras. Não que este gesto tenha dado fim as condições inumanas e ao cárcere dos “loucos”, mas certamente foi um avanço diante de tão horrenda situação. Deportes (apud Foucault, 2001, p. 148-49) nos dá um exemplo de como eram essas condições:

O infeliz que por mobília tinha apenas esse catre coberto de palha, vendo-se exprimido contra a muralha, na cabeça, nos pés ou no corpo, não podia gozar do sono sem ser molhado pela água que vertia dessa montanha de pedra. Em Salpêtrière, continua, a habitação é mais funesta e freqüentemente mais mortal. É que no inverno, quando das cheias do Sena, os cômodos situados ao nível dos esgotos, tornavam-se não apenas bem mais insalubres, como, além disso, refúgio para uma multidão de grandes ratos que à noite se jogavam sobre os infelizes ali presos, roendo-os onde podiam; encontraram-se muitas loucas, com os pés, as mãos e o rosto dilacerados pelas mordidas, muitas vezes perigosas, muitas das quais morriam. (...) Em Bethtleem a fim de conter um louco considerado furioso: ficava amarrado a uma longa corrente que atravessava a muralha, permitindo assim ao guardião dirigi-lo, mantê-lo na coleira, por assim dizer, do exterior; em seu pescoço havia sido colocado um anel de ferro ligado a um outro anel por uma curta corrente; este segundo anel deslizava ao longo de uma grossa barra de ferro vertical fixada em suas extremidades ao chão e ao teto de sua cela. Quando se começou a reforma Betheleem, encontrou-se um homem que durante doze anos vivera nessa cela submetido a esse sistema coercitivo.

Nas épocas mais contemporâneas, se o louco não era mais tratado como uma besta animal, isso não significa que o tratamento violento tenha se extinguido, mas tomou novas formas, um exemplo disso foi Ugo Cerletti que admitia a incompatibilidade da esquizofrenia e da epilepsia, incompatibilidade que ainda hoje até certo ponto é admitida, então ele sempre se perguntou de que forma gerar crises convulsivas em esquizofrênicos. Cerletti visitou certa vez um matadouro de porcos em Roma e observou que os porcos submetidos a choques elétricos antes de serem abatidos tinham crises convulsivas. “Foi uma iluminação as avessas! Cerletti concluiu que se poderia também provocar no homem uma convulsão, por corrente transcerebral, sem matá-lo” (Silveira, 2001, p. 11), assim em 1928 surgia o eletrochoque. “’Não, outra vez! É horrível!’ foram as primeiras palavras pronunciadas pela primeira vítima do eletrochoque” (op. cit).

Lembremos também as memoráveis súplícas de Antonin Artaud, internado no hospital de Rodez na França, para que parassem de lhe dar eletrochoques: Eis uma carta escrita por Artaud ao seu psiquiatra, em 1945:

O eletrochoque me desespera, apaga minha memória, entorpece meu pensamento e meu coração, faz de mim um ausente que se sabe ausente e se vê durante semanas em busca de seu ser, como um morto ao lado de um vivo que não é mais ele, que exige sua volta e no qual ele não pode mais entrar. Na última série, fiquei durante os meses de agosto e setembro na impossibilidade absoluta de trabalhar, de pensar e de me sentir ser...[i] (op. cit, p.12).

Outro tratamento que precedeu o eletrochoque foi o coma insulínico ou choque hipoglicêmico (método de Sakel), nesse tratamento a eficácia dependia de 30 a 40 horas de coma. “Tanto o coma insulínico quanto o eletrochoque provocam profunda regressão fisiológica e psicológica, apagando naqueles que são submetidos a esse tipo de tratamento as funções psíquicas superiores. Essa desmontagem da estrutura psíquica seria seguida, segundo seus adeptos, de uma reconstrução sadia” (op.cit).

Citemos Silveira (2001, p.12):

A perda de memória, em graus variados, em ambos os tratamentos de choque, poderá ser recuperada. E é precisamente nessa perda de memória, decorrente de possíveis ligeiras lesões cerebrais, que residiria a eficácia desse tratamento, isto é, o esquecimento dos acontecimentos que provocaram a psicose. E se durante a reconstrução da estrutura psíquica voltar a recordação dos acontecimentos motivadores dos distúrbios psíquicos?
Essa suposição é precisamente a mais aceita pelos adeptos dos tratamentos de choque. Valeria a pena esquecer os conteúdos nucleares das psicoses, ou antes, seria preferível trazê-los à tona, confrontá-los, tentar interpretá-los, metabolizando-os e mesmo transformando-os?

Chegamos finalmente a uma das mais complicadas invenções modernas, a lobotomia. Ela surgiu como método terapêutico em 1936, sendo criada por Egas Moniz, e seccionava fibras nervosas que ligavam os lobos frontais a partes subjacentes do cérebro. “A psicocirurgia é definida por W.Freeman como operação cirúrgica sobre o cérebro intacto, tendo por objetivo obter alívio para sintomas mentais” (op.cit). Para Moniz para curarmos pacientes com idéias fixas e comportamentos repetitivos temos que: “destruir arranjos mais ou menos fixos das conexões celulares que existem no cérebro, e particularmente aquelas que se relacionam com os lobos frontais” (Moniz apud Silveira, 2001, p. 12).

Depois da psicocirurgia os pacientes se tornavam dóceis e autômatos, além de ficarem muito prejudicadas as faculdades de abstração e imaginação, suas produções pueris e decadentes. Já as famílias e a dinâmica do hospital iam muito bem, gozando da tranqüila calmaria. (Silveira, 2001).

A explicação ética da época era de uma doçura incomensurável: “Em editorial – ‘A ética da leucotomia’ – publicado no British Medical Journal, em 1952, em defesa da psicocirurgia, pode-se ler este espantoso argumento: ‘Se a alma pode sobreviver à morte, certamente poderá sobreviver a leucotomia’” (op. cit, p.13).

Mediante tão brutais acontecimentos, de uma lógica da violência que até certo ponto foi derrubada por Nise da Silveira no Brasil, acreditamos na importância de relatar essa história dos tratamentos agressivos na loucura para podermos olhar de frente todas as atrocidades que já foram cometidas com esse público, para que não voltemos a incorrer nos mesmos erros. Mediante a ênfase dada por Silveira nesses fatos, nessa necessidade de modificação da psiquiatria de sua época, acreditamos ser vital o conhecimento dessa história justamente para clarearmos nossas condutas, não sendo iludidos nem mesmo por supostos saberes científicos que, mesmo em toda sua cientificidade, muitas vezes incorrem nos mais absurdos e deletérios enganos, talvez não no nível biológico, farmacológico, material, mas uma falta muito mais grave, uma falta de humanidade.

Lembremos, para o fechamento do capítulo, o poema de Beta (apud Silveira, 2001, p.13):
Os médicos dão muito remédio
E as enfermeiras para não terem trabalho
Só ficam gritando
Vou dar choque
Vou dar amarra
Ser louco é uma barra.
Beta










[1] - É importante que definamos o conceito de sombra. Por sombra entendemos tudo aquilo que é recusado pela pessoa e mantém-se inconsciente, quer dizer, abaixo do limiar da consciência. Desse modo a sombra não necessariamente fala de algo negativo, ela apenas fala do recusado, seja algo que seria extremamente benéfico para o sujeito ou não. Segundo Von Franz: “A sombra não é o todo da personalidade inconsciente: representa qualidades e atributos desconhecidos ou pouco conhecidos do ego – aspectos que pertencem sobretudo à esfera pessoal e que poderia também ser conscientes. Sob certos ângulos a sombra pode, igualmente, consistir de fatores coletivos que brotam de uma fonte situada fora da vida pessoa do indivíduo” (Jung, 2001, p.168).
[i] - Artaud, A. Ouvres Completes XI, p. 13. Gallimard, Paris, 1974.